I02I - Costumes

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Encontrava-me sentada contra a parede de pedra da detenção. Meu braço havia sido enfaixado e Gustav Morrison estava a minha frente.

Do outro lado das grades, é claro. Kiros a seu lado tinha um pano no nariz, o tecido que já fora de alguma cor agora se tornava carmesim, da mesma cor do seu cabelo. Eu havia lhe quebrado o nariz, ele havia me dado um tiro de raspão. Nada mais justo.

Pela expressão de Gustav sabia que ele pensava diferente, mas não fora ele que havia sido caçado pelo Limite, levado um maldito tiro, tido um cão sobre si e finalmente ter sido arrastado de volta para a vila à contra gosto depois de tentar escapar novamente.

- Você quase me enganou Aysha, pensei que finalmente tivesse desistido dessas tolices. – Começou, Gustav já era um homem de idade o que era evidente pela cabeça calva, cabelos esbranquiçados e pele flácida, ostentava uma barriga farta que invejava a muitos e tinha uma aparecia agradável de rosto e mãos limpas. Era ele que cuidava da detenção e escolhia a dedo os membros da patrulha que vigiavam o Limite. Kiros era um desses membros, o maldito capitão deles.

- Coloque seu nome três vezes na Pira e poderemos falar. – Respondi mal humorada, não era Gustav com seus olhinhos cor de esterco e mãos limpas que poderia ser comido vivo por uma abominação de pesadelos por motivos egoístas de homens.

- Sabe que não podemos mudar isso, é o costume. Assim era como fazia meu pai, meu avó e toda a minha geração anterior... e a sua também. – Acrescentou com cautela, parecia cansado, esteve dormindo até Kiros me trazer para a detenção esmurrando-lhe a porta. Olhei-lhe a cara de Kiros com ódio puro.

- A merda vão os costumes. – Sibilei.

- Trata-te de controlar a boca Aysha. – Kiros fez reconhecer sua presença. O que ele ainda fazia ali era um mistério, não parecia agradável com sangue seco manchado a cara robusta.

- Merda, esterco de vaca, infernos, que satã urine em sua alma...

- Já chega! – Gustav gritou sobre minha torrente de palavrões. Sob a luz das tochas eu podia ver a cor subir pelo rosto de Kiros, incomodava-o minha falta de subordinação a ele. Pobre coitado.

- Kiros tem razão Aysha, você é uma mulher. – Gustav enfatizou. – Não pode andar vestida desse modo ou falar como um bêbado. As pessoas comentam, sua conduta desagrada a muita gente, não querem que os filhos vejam seu exemplo. - Disse.

Por que uma mulher andando de calças e tratando do próprio sustento era um escândalo.

- Então que me deixe sumir desse lugar. – Falei com um leve dar de ombros, era uma opção bem agradável em minha mente. Melhor do que continuar a viver em um lugar desprezível como Sweney Pines com suas belas macieiras e sacrifícios sazonais.

- Ninguém sai de Sweney Pines há mais de quinze anos. Você melhor do que ninguém deveria entender os riscos. Quer mesmo sair do Limite, de nossa proteção? – Gustav tinha a testa franzida quando perguntou. Kiros parecia ter enrijecido as costas. Era um assunto delicado e nada menos que a primeira vez que falávamos na possibilidade de me deixar ir. O que eles tinham a perder com minha partida? Certamente nada. Todos sabiam que eu simplesmente não pertencia a aquele lugar. Uma refém. Era assim que eu me sentia. E quanto aquilo, quanto aos acontecimentos do meu passado, eu tinha dado um jeito neles.

- Uma proteção que tem como custo uma vida todos os anos não merece ser chamada assim. – Falei, a mais pura das verdades em meus conceitos. Gustav pareceu pensar a respeito.

- O Lobo nos protege. – Kiros falou, entre dentes, porque aquele era o único argumento que lhe havia sido disciplinado. Entoado nas orações pagãs por Viremont. E mesmo que fosse a verdade, que coisas ainda piores espreitassem do lado de fora, nada pagaria o que Ele exigia.

- E come a garotas também! – Respondi-lhe, levantando de onde estava sentada até então. Não era tão difícil de entender assim o quão errado era aquilo, ou era?!

- Não podemos mudar a lei. – Gustav falou finalmente, não me surpreendeu, nada naquelas pessoas ou lugar poderia me surpreender. - Devo relembra-lá da consequência de ter tentado escapar perto do sacrifício?

- Por favor. – Respondi com tanta doçura que uma abelha se afogaria nela se fosse capaz.

- É quadruplamente elegível agora Aysha.

Um bolo se formou em minha garganta, de sentimentos que eu não podia expressar, de lágrimas que jamais deixaria alguém ver. Então manti a postura, tentando não me recriminar por minhas escolhas.

Três coisas faziam uma garota se tornar uma Elegível. A ausência de pais, a integridade de sua pureza e a idade. Eu tinha todos, por isso era uma triplamente elegível. Ser apanhada em uma tentativa de fuga uma semana antes do sacrifício, adicionaria mais um titulo excepcional. Fechei os olhos e os abri segundos depois, um sorriso forçado nos lábios se formou antes que eu me desse conta, o direcionei a Kiros. Ele podia ter me salvado, mas escolheu ser minha condenação. Mais um motivo para odiá-lo.

- Tome esta noite para pensar, ficara presa até a segunda refeição do dia de amanhã. – Falado isso Gustav se dirigiu para porta. Kiros o acompanhou como uma segunda sombra, mas se deteu o suficiente para sussurrar um sinto muito.

Não acreditei nele. A sua máscara contra a culpa tinha ficado tão boa quanto a minha.

Gustav voltou para me libertar no dia seguinte. Não falei com ele, nem com ninguém. Tinha voltado a minha rotina 'normal' ou pelo menos era o que eu fazia parecer. Não era segredo que todos esperavam se livrar de mim nesse sacrifício, era melhor que fosse a órfã problemática do que uma de suas preciosas garotas. 

Algumas vezes eu concordava com eles. 

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