I45I - Caixinha

4.1K 673 267
                                    

Minhas habilidades com arco e flecha podiam ser péssimas, mas eu entendia de lâminas. O único problema era que os soldados de Ulrik entendiam um pouco mais e seus reflexos sobrenaturais os ajudavam a desviar, bloquear e contra-atacar com uma efetividade superior.

A espada em minhas mãos, de repente, se tornou pesada. Pude sentir o suor frio percorrer a minha face, cobrir a minha pele com uma segunda camada salgada. Os batimentos do meu coração tamborilavam em meus ouvidos fora de ritmo. Engoli a bile, o medo e um pouco mais de magia, derrubando um soldado aos pés de Elikham. Ele mal teve tempo de respirar antes de correr até mim, bloqueando o ataque do soldado com que eu lutava.

- Você precisa sair. - Ele rosnou. Seu uniforme de soldado da cidade do norte estava encharcado de sangue, havia um corte na lateral do seu pescoço que fechava a medida que eu continuava observando. Não era de se admirar que os soldados durassem tanto.

- Não! Preciso matar Ulrik. - Falei, perdendo o ar com as palavras. Ele golpeou o soldado no estômago transpassando a lâmina que brilhou em um tom carmesim, antes que Elikham a puxasse de volta.

- Se matarmos Ulrik nesse ponto, não teremos o antídoto. - Respondeu, uma vaga lembrança me dizia que Edmon havia falado o mesmo, o procurei pelo salão, vendo-o jogar uma espada para Raymond. Ele havia se transformado de volta, entretanto seu Lobo Negro de sombras permanecia ao seu lado, como uma forma espectral, sua sombra. Sua maldição.

- Se não o matarmos, isso não terá fim.

Novamente senti o poder de Ulrik se agitar em meu corpo, como se ele o convocasse, arranhando meu interior em busca de uma saída. Caí de joelhos, vendo meu reflexo no piso polido. Bobamente pensei em Cintia, Guilia e Vanessa que apesar de conhecê-las há tão pouco tempo tinham feito o melhor para me deixar apresentável e além de tudo, tinham sido gentis e verdadeiras comigo. Pensei em Kay com seus olhos inocentes, aguardando pelo resgate que nunca veio. Pensei em Edmon e suas aulas de etiqueta, que eu mal tive tempo de desempenhar. Pensei em Raymond colocando seu presente em meu cabelo, me pedindo para ter cuidado. Todos eles se eu não fosse capaz de fazer algo morreriam ali, até Kohina que surpreendentemente tinha se mostrado uma aliada.

Então pensei nas ultimas palavras da minha mãe: me desculpe, por não ser forte o suficiente, por te deixar sozinha nesse mundo cruel. Finalmente pensei em mim mesma e na mentira que eu contava, porque eu sabia quem era. E sabia que estava na hora de assumir isso.

Estava na hora de finalmente abrir a minha caixinha.

De assumir meus pecados, o meu desejo egoísta de ter tudo. Sem limitações, falei, apertando meu dedo contra a ponta afiada do enfeite de cabelo. Sangue e poder, era o que os Liones exigiam.

Como desejar. Imediatamente meu corpo respondeu, pressionando minhas mãos no chão, encontrando novamente as chamas, sob a frieza e as vibrações da batalha no piso. Pensei nos ramos que tinha visto Aberlian convocar e criei os meus próprios, invisíveis, se alastrando como fantasmas. Evitei quem importava, Kohina, Aberlian, Elikham, Edmon, Raymond. E então tomei tudo de todos. Sendo preenchida pela magia, pelo calor, pela arrogância, pelo poder puro e simples.

E você Aysha é puro poder.

Sim, finalmente fui capaz de concordar, levantado do chão, sentido minha pele vibrar, vendo as dezenas de soldados e convidados caírem. Ergui minha cabeça, andando até onde Raymond e Ulrik travavam sua própria batalha. Com um movimento abri uma fenda no meu vestido e peguei minha adaga.

Alguém chamou meu nome, não olhei. Tive a impressão de que seguraram meu braço, mas minhas pernas continuaram até o meu destino.

Porque tudo exigia um preço. E sangue era o meu. O nosso.

A espada de Raymond cortou o ar atrás das minhas costas, quando entrei sem aviso em seu combate. Por uma última vez eu e Ulrik nos encaramos, saboreei o seu medo quando viu o que havia nos meus olhos. Sua espada golpeou em minha direção, mas eu a segurei, sentindo meu sangue banhá-la.

Então com um movimento enfiei minha adaga em seu peito, vendo sua tão presente expressão de arrogância falhar por um momento.

- Você é formidável. - Falou, sangue se derramou pelo canto de seus lábios, tão cinzentos quanto os meus tinha estado outra hora. - A última Liones do Continente, eu teria feito coisas incríveis com o seu poder.

- Não se preocupe, eu farei. - Sussurrei, perto do seu ouvido, um segredo para seu túmulo.

Arranquei minha adaga do seu coração. Aprisionando para sempre parte de sua magia em meu corpo.

Não havia antídoto. Ulrik Velkan, Mestre da Cidade do Norte, era um Lican conhecido por seus truques sujos.

Ele não jogaria apostando a metade, jogaria com tudo. Afinal de contas, um coração Liones não podia ser verdadeiramente envenenado. Eu era o seu antídoto.

O corpo de Ulrik caiu sem vida. Soltei sua espada, escutando meu sangue gotejar no salão, três vezes, antes que o corte se fechasse.

E em seguida desabei, sendo amortecida por braços fortes e cálidos. Um sorriso imprudente surgiu em meus lábios. Olhei para Raymond, tocando seu rosto com a minha mão perfeitamente curada, mas ainda ensanguentada.

- Acho que vencemos. - Falei, sendo apertada contra seu corpo.

- Sinto muito, Aysha. É tudo culpa minha. - Falou, em outro momento eu teria rido de suas palavras.

- Não sinta, está tudo bem. - Garanti.

Tudo parecia certo para mim, como nunca esteve. Porque eu podia finalmente me ver tendo o que desejasse, tomando o que quisesse, era o que fazíamos. Era o que eu tinha nascido para fazer.

- Vida longa aos novos Mestres da Cidade do Norte. - Aberlian falou, andando até nós, sua voz melodiosa e suave. Provavelmente o único que continuava impecável, sem nenhuma gota de sangue em seu traje formal. Kohina vinha logo atrás, lambendo seus dedos ensanguentados. Eu tinha a visto matar três soldados, perfurando-os com suas garras em pontos vitais.

Fiquei de pé, aceitando a mão de Raymond para levantar. Seu poder vibrava abaixo dos meus dedos, seria tão fácil toma-lo, dobra-lo e usá-lo como eu quisesse. Usei todo meu autocontrole para resistir à tentação.

- Sinceramente não foi o pior baile que já estive. - Edmon falou, ele e Kohina trocaram olhares.

Com um suspiro libertei minha influência sobre os convidados.

- Precisamos resgatar Kay. - Lembrei.

- Não se preocupe, fiz isso quando me infiltrei na guarda pessoal de Ulrik, Kaydor está sendo tratado por um médico confiável da Cidade do Leste. - Elikham falou, ele começou a guardar a espada na bainha, mas parou na metade do movimento e a jogou no chão. Seus movimentos de luta e sua postura eram muito superiores para um simples membro de um Clã Selvagem.

- Obrigada. - Falei, ele assentiu em resposta.

Aos poucos os convidados que haviam restado despertaram, tomando conhecimento da situação, olhando para mim como se vissem o próprio diabo na terra. Gostei da sensação.

- Lordes da Cidade do Norte. - Raymond falou, sua voz carregada em autoridade. - Peço sua lealdade diante do corpo de seu antigo Mestre. Seguirei os ditados do Tratado até seu fim, e os que vierem após ele. Sob meu domínio não pregarei injustiças, apenas a lei que nos é comum. Do sangue ao sangue.

- Do sangue ao sangue. - Repetiram em uníssono.

Com um movimento, estendi minha influência sobre os convidados. Um a um eles se ajoelharam. Suas expressões mistas de medo, raiva e submissão faziam a coisa liberta em mim rir e se deliciar. Me perguntei porque tinha resistido a ela por tanto tempo.

Raymond apertou minha mão.

- Isso não é necessário. - Murmurou.

Mas eu gostava do efeito, de vê-los se ajoelhando.

Então porque não ter o mundo inteiro?

VermelhoWhere stories live. Discover now