I03I - Fitas Vermelhas

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Dias depois eu monitorava o Limite, a divisão que separava Sweney Pines do resto do mundo. Toda a vila ficava em uma depressão, escondida atrás de uma montanha. O terreno surpreendentemente plano e fértil tinha sido o motivo ao quais nossos ancestrais haviam escolhido o lugar, era um paraíso. Um paraíso maldito guardado por uma besta, mas suficientemente bom para mantê-lo a preço do sangue de inocentes.

Fitas vermelhas adornavam o corredor de árvores que levavam até o portão do Limite, depois do portão seguia uma trilha feita por carroças de vilas vizinhas às quais eram distantes o suficiente para aparecerem apenas uma vez em cada três meses. Vendíamos nossas maças a eles em troca de objetos do mundo exterior. Diziam serem as melhores que já haviam encontrado. Não podia discordar ou concordar, nunca tinha provado qualquer outro tipo. Eu odiava as maças, também odiava as fitas delicadamente amarradas para o festival. Odiava a tudo que fosse vermelho. O cabelo de Kiros era e sangue fresco também.

Amarrar as fitas simboliza que o festival estava próximo. Cada fita simbolizava uma Elegível, ao todo havia trinta e duas delas enfeitando ás árvores. Mas isso não significava o total de nomes a ir para a Pira, dependendo dos títulos o nome de uma Elegível poderia estar mais de uma vez. Só o meu estaria malditamente quatro vezes.

- Se vai tentar escapar novamente poderia deixar isso para amanhã? – Me sobressaltei ante a voz atrás de mim. Petra apoiava muito mal um balde carregado de flores brancas em seu ombro, flores de macieira. Eu sabia que as flores colhidas serviram para as tiaras que cada Elegível deveria usar durante a cerimônia de escolha, de outra forma era proibido colhe-las.

As macieiras eram consideradas sagradas, um presente do Lobo. De fato elas eram incomuns, nunca vi alguma ter adoecido ou perdido todas as folhas durante o outono e inverno como faziam as outras plantas. A cerimônia de escolha era feita horas antes do sacrifício, assim a família teria tempo de se despedir e a Escolhida não teria tempo para escapar. Para reforçar a ideia da não fuga, os patrulheiros cercavam a casa da Escolhida. E depois do sacrifício todos iam sorridentes para casa, aliviados por não terem perdido um ente querido, todos menos a família da vitima suponho.

- Preciso de ajuda. – Petra falou novamente, a voz doce fazia bem aos ouvidos. Sem esperar por minha reposta ela começou a caminhar de volta. Desci da rocha onda estava sentada e a segui, não fazia ideia do que ela poderia querer de mim. As pessoas procuravam não ter muito contato comigo, como se minha presença fosse uma afronta a suas morais submissas.

- Que tipo de ajuda? – Perguntei desconfiada, ela trocou o balde de ombro e me olhou. Os olhos azuis tinha uma cor desbotada, mais alguns anos e estariam completamente foscos. A mesma enfermidade que tinha levado a visão da mãe a assolava. No entanto isso não parecia a incomodar e a tornava uma Ilegível, garotas com enfermidades e deficientes não eram cotadas. Só o melhor para a besta de Sweney Pines.

- Do tipo que a mantenha ocupada para não tentar nenhuma asneira. – Respondeu voltando a andar. As palavras soaram em uma constituição que eu conhecia bem.

- Palavras de Kiros? – Perguntei acompanhando seu ritmo. Ela não pareceu surpresa por eu ter adivinhado. Talvez esperasse isso.

- Sim. – Respondeu.

- Ele esta me vigiando? – Assim que perguntei parei de andar e olhei em volta, não estávamos muito longe do centro comercial da vila. O centro era a primeira coisa que alguém veria se viesse de fora, assim os estrangeiros e os nada acolhedores cidadãos de Sweney Pines teriam o mínimo de contato possível. Eu já havia visto os patrulheiros do portão, Kiros não estava entre eles, era impossível perder a cabeleira vermelha em meio à luz do dia.

- Só a noite. – Ela demorou a responder, considerando se me contava ou não.

- Porque esta me dizendo isso? – Perguntei. Um pouco de cor cobriu as bochechas pálidas.

- Eu o gosto. – Disse envergonhada.

- Eu sei. - Respondi. Em nossa infância, tínhamos crescido os três juntos e nos conhecíamos até lá melhores do que qualquer outro. Mas tudo aquilo tinha mudado, eu havia mudado e eles também. Kiros arrastado pelo pai para suas responsabilidades como futuro líder, seu senso de proteção virando algo como obsessão por mim, enquanto a Petra que sempre fora a mais frágil só lhe sobrou o desdém.

- Mas ele gosta de você. – Falou, parando de caminhar. - Ele a escolheu. – Pude sentir sua dor através daquelas palavras.

- Eu não gosto dele. – Afirmei, tentando tocar seu braço, mas ela saiu do meu alcance discretamente.

- Ele não liga. – Disse, balançado a cabeça, seus cabelos eram loiros, da cor do trigo e como de costume estavam presos no alto de sua cabeça com uma fita azul.

- Não vou permanecer em Sweney Pines para sempre. – Declarei, mesmo que meu nome não fosse sorteado e o limite de idade estivesse próximo, nada me faria continuar nesse lugar. - Kiros terá que se dá conta disso.

- É o que espero. – Era sincera.

Eu também.

A parte sobre precisar de ajuda não era mentira. Petra tinha ficado sozinha como responsável pelas tiaras. Era comum darem tarefas para as Ilegíveis, boa parte do festival era organizado por elas, como algum tipo de compensação. Eu ficaria feliz fazendo as tiaras contanto que não precisa-se usar uma.

Ajudei Petra a colher os ramos verdes que usaria para trançar junto às flores. Eu tinha maestria quando se tratava de cortar algo com minha faca de caça. E vê? Apenas uma boa garota ajudando a uma amiga, nada suspeito patrulheiros.

Mesmo sem enxergar direito Petra era boa com as mãos, entendi porque tinha deixado essa parte com ela. Ela não precisava ver o que estava fazendo, na verdade ela mal olhava para a tirara, apenas a sentia, retorcia o pedaço de ramo o dando forma e depois prendia as flores, embalsamadas com conservantes, usando grude. Não conseguiria fazer melhor nem com anos de pratica, tarefas domesticas tinha total aversão a mim, ou eu a elas.

- Aysha.

- O que? – Perguntei quando ela me chamou, já estávamos a horas fazendo as tiaras em silêncio e apenas dez tinham ficado prontas. Talvez nossa conversar anterior pudesse ter deixado o clima tenso.

- Você realmente acha que poderia viver fora daqui? - Perguntou resignada.

Não precisei pensar a respeito para responder. Nada me prendia a Swenney Pines, exceto o próprio lugar.

- Não tenho nada a perder, sabe, em tentar. – Respondi em um tom inseguro. Ela balançou a cabeça.

- Acho que eu também tentaria, se vale-se a pena. – Falou, terminando mais uma tiara.

Não pude respondê-la. Meu impulso era dizer que ela podia, só que mais alguns anos e Petra não veria nada. Preto era uma cor tão ruim quanto vermelho. 

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