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As tarefas gradualmente iam se acumulando ao passo que as horas da vida de Calendra passavam

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As tarefas gradualmente iam se acumulando ao passo que as horas da vida de Calendra passavam.

O cheiro da torta assando no forno tomava o ar de sua casa e seguia a esmo para fora da janela, rumando pelo bosque verdejante da mata ao redor. Suas mãos trabalhavam com pressa nos legumes em cima da tábua enquanto esperava o molho chegar ao ponto sobre a chapa do fogão. Havia muitas tarefas para terminar e o tempo se encurtava rapidamente, mas cada vez mais Calendra precisava se concentrar na força aplicada sobre a faca. Sentia que a visão perdia o foco e a mente anuviava sem aviso prévio. Era necessário largar o instrumento, apoiar as mãos na bancada e esperar alguns momentos até que tudo voltasse ao normal, motivo pelo qual não conseguia finalizar nenhuma das coisas que pretendia fazer.

Desistindo por hora dos legumes, pegou a colher de pau e com ela tratou de mexer no conteúdo da panela. A textura estava consistente e deslizava pela superfície de madeira sempre que puxada para o alto, caindo de volta ao restante do molho em um filete que, só por admirar, dava água na boca. Satisfeita, retornou à tábua, mas, antes que pudesse tocar na faca, uma nova tontura assaltou seu corpo, forçando-a a respirar profundamente em busca de ar. O ambiente perdeu a cor, os músculos se convulsionaram e uma sensação fria a congelou até os ossos. Em seguida, uma súbita fraqueza nas pernas fez com que seu corpo pendesse para frente e o braço batesse com força no escorredor de louças que descansava sobre o balcão, provocando uma confusão de taças que rolavam, caíam e se espatifavam no chão.

Cada impacto soava com estrondo e espalhava as centenas de estilhaços pelos ares. Os raios solares da manhã que atravessavam as vidraças da janela alcançaram os pequeninos fragmentos, refletindo-os em um espetáculo de luzes coloridas que irradiava beleza e iluminava o ambiente. Desesperada com a confusão, Calendra tateou os balcões em busca de algo com que pudesse limpar aquela bagunça, mas só o que conseguiu foi tropeçar em uma cadeira e acompanhar o trajeto das taças. Sentiu as palmas e os joelhos indo de encontro aos cacos, que rasgaram sua pele sem dó. No entanto, os cortes não queimavam tanto quanto os pensamentos.

Ainda que tentasse se acalmar, era difícil se concentrar em algo que não fosse os membros se debatendo sem controle, ou os olhos que subitamente deixavam de enxergar. Muito pior foi o momento em que o interior da cabeça começou a latejar, contraindo-se de tal maneira que era como se sugasse os olhos para dentro. Um uivo penoso lhe escapou dos lábios e suas mãos foram de encontro ao rosto para sanar aquela dor visceral, mas não obteve trégua alguma.

Agonia a preencheu, ocasionando uma torrente de lágrimas que escorriam livremente por suas bochechas. Se Calendra pudesse enxergá-las no reflexo do espelho, veria que eram vermelhas como sangue, e que ela própria era a imagem do horror. Sua boca murmurava pedidos de socorro, porém não havia ninguém ali para ouvir os seus chamados. Só conseguia pensar que, no meio de tanta morbidez, havia a iminência da morte e que, tendo sua vez chegado, não teria a oportunidade de se despedir de nenhum ente amado.

Passado um instante, Calendra lutou para afastar aqueles pensamentos. Com um rosnado animalesco, tentou fugir da escuridão que se avantajava sobre ela e se concentrou na luz do dia. Ainda que com muita dificuldade, semicerrou as pálpebras e encarou os raios solares que atravessavam as vidraças. Por algum motivo que não conseguia explicar, sabia que era importante deixar que a luz a invadisse por inteiro.

Apesar de o esforço a ter auxiliado a se orientar, não conseguiu se livrar da sensação de que perdia a consciência. Como a detestava! Era ruim o suficiente saber que perdia o controle sobre si mesma nos breves instantes em que vislumbrava eventos que ainda não haviam acontecido, mas aquilo era pior. Além de não vislumbrar nada, sentia uma escuridão sufocante a tomar de pouco em pouco.

A sombra, como a chamou, tinha uma força tal que logo atropelou seus sentidos mais básicos. Ela era asfixiante, difícil de tragar. Consumiu-a inteiramente: ossos, veias, nervos, órgãos, até que mais nada restasse intacto. Calendra mal conseguia suportar, mas, apesar da incapacidade de assimilar os demais aspectos fisiológicos, a dor e a escuridão eram, como sensação e presença, uma constante.

Suas memórias foram sugadas e espremidas em um espaço vazio, de modo que nem lembranças nem ideias se formulavam, transformando a mente em um receptáculo oco. Calendra se tornava uma marionete sem vontade ou liberdade. Para ela, a sombra sempre existira e sempre existiria; sempre estivera e sempre estaria moldada e entrelaçada às entranhas de seu corpo.

Perdera o controle, sendo alçada a um local distante, desconhecido e sem retorno. Nunca sentira um medo tão profundo de se perder em si mesma, porém enfim tomou consciência, com um doloroso lamento, de que não seria capaz de impedir aquela força. Por isso, cerrou as pálpebras pela última vez e se deixou levar.

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