Vol. 20

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O lobo negro avançou sobre mim. O impacto me jogou contra a sólida parede de pedras. Procurei me erguer, mas a fera me arremessou para a outra extremidade do salão. Em mais uma tentativa de me por de pé, fui tomado por uma espécie de convulsão. O lobo preparava-se para mais um ataque e em meio ao colapso, expeli pela boca lava derretida. Neste instante, a fera se conteve, olhando-me com espanto. Indo de um lado a outro, aguardava para saber o desfecho de minha agonia.

Meu corpo ardia intensamente a ponto de rasgar minha camisa. Uma dor lancinante irrompeu minhas costas expelindo um par de asas membranosas. Minha pele foi tomando outra cor e protuberâncias saltavam, no formato de pequenos espetos. Fui avantajando o meu corpo. Meu cabelo, antes curto, revelou fios compridos e escuros. Dava para sentir os ossos estalando a cada centímetro de expansão. Garras poderosas surgiram e a dor me fez atritar o chão de pedra, abrindo fendas profundas. Uma nova golfada de lava incandescente deixou minha boca. Aquela metamorfose pegou Carmelo de surpresa. Seus olhos atônitos revelavam o espanto. Imediatamente liberou um uivo poderoso. Mais cedo ou mais tarde outros como ele estariam aqui.

A dor que me arrebatou havia se extinguido, sobrando a fúria. Encarei o lobo negro que se manteve à minha espera. Me ergui liberando um grunhido assustador. Certamente o sangue de Kalisto estava ligado diretamente àquela transformação. Impulsionando-me voei em direção ao lupino.

Minha velocidade pegou o lobo de surpresa. Minhas garras rasgaram o peito do meu oponente, arrancando um grunhido de dor. O segurei pelo pescoço enquanto evitava sua robusta mandíbula que mordia o vazio enquanto o erguia. Colocando suas patas sobre meu peito tomou impulso. Nos afastamos provisoriamente. Bati fortemente minhas asas, ganhando uma certa altura. O lobo saltou, usando as paredes como trampolim. Minha garganta ferveu e quando o lobo se aproximou, expeli um jato de lava quente que o acertou de frente. A fera tombou sobre o piso de pedras. O calor consumia sua pele enquanto o grande lupino agonizava tentando se livrar do magma. Desci me posicionando a sua frente. Recolhi as asas enquanto Carmelo erguia-se, vagaroso. Dava para sentir sua fúria. Ele não admitiria a derrota. Com o corpo parcialmente comprometido avançou sobre mim, em desespero. Desviei do golpe, contra-atacando velozmente, sem dar chance de reação à criatura. Minha mão atravessou o corpo do grande lobo negro. Seu intento foi interrompido de forma brutal. Ele ficou parado, sem reação.

Ao puxar o braço seu coração repousava em minha mão. Seu corpo cambaleou para um lado e para o outro, até tombar diante de mim. Levei o coração à boca consumindo parcialmente o órgão.

— Eu selei o seu destino. — Falei vitorioso.

Após a luta emiti um forte bramido. Neste instante outros lupinos chegaram e ao verem Carmelo derrotado, foram tomados pela supressa. Imediatamente expandi as asas, fechando-as rapidamente. O deslocamento de ar arremessou as feras umas sobre as outras. Recolhi o corpo moribundo do Carmelo e com um salto alcancei as alturas, distanciando-me da matilha.

Comecei a subir, batendo com mais vigor as asas. Conseguia captar a energia, todos estavam na parte superior da torre. Minha velocidade somada ao meu ímpeto ignoraram as barreiras físicas. Atravessei as estruturas até surgir em outro salão, bem mais amplo. Havia chegado ao topo da grande torre.

Minha presença chamou a atenção de todos. Ao fundo, Hanna e seu filho Vishal, senhores desta cidade, estavam sentados em seus respectivos tronos. Minha presença abriu um clarão. Joguei a frente o corpo de Carmelo, provocando o espanto de todos e a ira de Hanna e seu filho. Carmelo era o seu imediato. Vê-lo sem vida, derrotado, feria o seu orgulho. Sua expressão fechada, inesperadamente dá lugar a um sorriso torto, quase debochado. Ela limitou-se a olhar para cima, o que fiz prontamente.

Duas gaiolas estavam suspensas. Em uma delas, Damra e na outra, meu pai. Meus olhos, atônitos, ainda não acreditavam. Meu pai estava vivo todo esse tempo, preso nesta cidade e agora, confinado a uma gaiola.

Encarei Hanna com todo o meu desprezo.

— Rick, meu caro. É simples, você terá que fazer uma escolha. Quem você irá libertar, a garota ou o seu pai? — Disse Hanna com um ar vitorioso.

Um grande impasse havia se instalado em minha mente. A quem deveria salvar? A dúvida me corroía a alma. Deveria salvar o meu pai, claro, invadi essa cidade para isso, fiz escolhas irreversíveis para salvá-lo, mas naquele momento, vendo Damra cativa, algo em meu íntimo me impedia de tomar tal decisão.

Resignado, me ajoelhei. A fúria que me trouxe até aqui foi se extinguindo até retomar minha razão. A aparência nefasta deu lugar ao humano. Neste momento, meu pai enfim pode rever o seu filho, depois de todos esses anos.

— Richard?

— Me desculpe... — Resignado, mantive a cabeça baixa. O fim estava próximo.

Hanna e Vishal se entreolharam, triunfantes. Fui ligeiramente cercado por alguns acólitos. Não havia nada mais a ser feito, até que uma voz familiar reverberou dentro de minha mente:

"Eu vivo em você agora"

Essa era a voz de Kalisto. Havia drenado todo o seu sangue, transformando o seu corpo em uma carcaça sem vida.

— Como isso é possível? — Balbuciei.

"Meus dons vão além de um simples corpo Rick, e agora, todos eles são seus".

— Se você habita o meu corpo, serei controlado por você? — Voltei a balbuciar

"Não o controlarei, vivo em seus instintos. Use os seus dons, convoque as feras aladas, você agora é o senhor delas. Chame-as e elas virão em seu auxílio"...

A voz se esvaiu e olhei para o alto encarando Damra e em seguida o meu pai. Os acólitos de Hanna fecharam o cerco. Fechei os olhos e respirei fundo, coloquei todas as minas forças no desejo de invocar tais demônios. Em um primeiro momento nada aconteceu, até que uma fera alada invadiu a torre através de um dos vitrais. Ela deu rodopios aleatórios ao redor da parte superior do salão. Segundos depois um grande estrondo foi ouvido. Milhares de feras aladas invadiram a torre, quebrando todas as vidraças. Fragmentos precipitaram-se, descendo como guilhotinas sobre os inadvertidos.

Uma confusão foi instalada no local. Me ergui ordenando que as feras não tivessem piedade.

TRAGO (2017) - LIVRO (COMPLETO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora