Vol. 16

25 7 1
                                    


O vento beijava o meu rosto em mais uma noite de Parallel. Minha pele, agora fria, recebia a rajada de vento com desprezo, uma vez que não precisava mais me aquecer. Todas as portas foram abertas para mim, e meus olhos contemplavam a cidade como ela era de fato. De um lado a cidade humana, de fundações seculares, que cresceu, evoluiu e que nos dias atuais amarga sua decadência e ao seu lado, a Cidade Escarlate, fervilhando na borda do inferno, liberando seus gases que invadem Parallel, precipitando as chuvas constantes.

Depois de minha morte, passei a descobrir o que a minha nova condição poderia me oferecer. Ganhei força, destreza, meus sentidos ficaram a flor da pele. O feitiço que me colocava à mercê dos lupinos se foi, me tornando invisível aos olhos de Carmelo e de seus acólitos.

Damra não havia me alertado sobre a incansável necessidade de beber sangue. A comida convencional não tinha mais qualquer atrativo. Para sustentar minha existência, precisava consumir sangue.

Era exatamente isso que estava tentando resolver. A filha de Kalisto gostava do submundo, indo de uma estação a outra de Parallel, alimentando-se daqueles moribundos que usam a noite como refúgio, mas optei em ver tudo de cima. Meus olhos monitoravam a cidade à procura de alguém capaz de me saciar. Estabeleci uma regra, só mataria aqueles que a sociedade despreza, criminosos. Não derramaria sangue inocente.

Uma fina chuva cobria a cidade. Comecei a saltar entre os prédios a procura de um novo ponto de observação. Minha sensível audição captou uma movimentação em um dos muitos becos da cidade. Um grupo de vagabundos perseguia um casal que havia saído de uma das inúmeras casas noturnas de Parallel.

Esta cidade se tornou cruel para com as pessoas, principalmente à noite. A lei do mais forte impera no escurecer de Parallel. A sorte deste casal é que eu sou o mais forte.

Continuei a percorrer os terraços, observando a movimentação. O casal acelerou o passo em uma tentativa inútil de fuga. Estavam sendo perseguidos por três meliantes e mais à frente o casal foi cercado pelos demais membros da corja. Ao contrário dos perdedores do metrô, esses usavam jaquetas com espetos, porretes, tinham corpos mais avantajados e cabeças raspadas. A garota começou a gritar em desespero enquanto o seu namorado levava os primeiros socos e chutes. Ele foi engolido pelos vagabundos como um bando de hienas ao se alimentar de uma carcaça.

A garota tentou mais uma vez fugir. O seu medo a fez optar em salvar a própria pele deixando o seu namorado na fogueira. Os delinquentes a impediram de sair e fizeram um cerco. Ela tremia de medo, dava para ouvir os seus batimentos e o fluxo sanguíneo percorrendo suas veias de forma acelerada. Os sinais vitais de seu namorado diminuíram, mas ainda estava consciente. Estava na hora de agir. Me deixei cair do prédio, como se estivesse mergulhando em uma grande piscina. Com um rápido rodopio consegui chegar ao chão com os pés firmes. A escuridão me abraçava, o que ajudava a me manter oculto.

O namorado a esta altura havia perdido os sentidos e todos se voltaram para a garota, que já estava sendo importunada pelo grupo. Sua blusa rasgada exibia parte dos seios. Aquilo ouriçou o grupo que apertou o cerco. A garota chorava bastante pedindo em vão que os brutamontes a deixassem ir.

— Não estão ouvindo os apelos da moça? — Minha voz ecoou através das trevas como um sopro gelado.

Todos se viraram tentando saber de onde veio à minha voz. Até a garota parou de chorar, ficando os soluços. O cerco à jovem se abriu, e brevemente as atenções se voltaram para o gueto. A garota recuou tentando cobrir seu corpo parcialmente nu. Neste momento apenas o progressivo gotejamento dos antigos canos era ouvido, lembrando um tic-tac de relógio.

TRAGO (2017) - LIVRO (COMPLETO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora