— Sua tolice será a sua sentença! — Falou enquanto girava o quadril.

Vishal conseguiu livrar-se da turba e com um grande salto, emergiu diante de Kalisto. Sua enorme mandíbula preparava-se para cravar os dentes no pescoço do irmão, mas com um giro rápido, vishal foi golpeado. O impacto o arremessou à distância e aos rodopios chocou-se contra o relevo do solo. Em meio ao sucesso do contra-ataque, gostas de suor denunciavam o grande esforço dispendido por Kalisto. Aquele golpe lhe daria o tempo para reagrupar seu contingente.

A dor me arrebatava a ponto de rasgar minhas roupas. A luz intensificou-se e começou a procurar outros meios de deixar o meu corpo. Boca, nariz e ouvidos, não havia limites para aquele brilho. Algo estava dentro de mim e necessitava sair de qualquer jeito. Coloquei as mãos em meu abdómen e forcei a ponto de enfiar mão através da carne. Liberei um grito de dor enquanto um raio de luz mais intenso terminava por romper minha pele. A força da luz foi abrindo caminho até me tomar por completo. Havia sumido dentro daquela luminosidade. Ainda estava ali, porque meus olhos viam tudo ao meu redor, mas eu havia perdido meu corpo físico, transformando-me em luz.

Kalisto mantinha seus olhos em Vishal que se recuperava do golpe sofrido. Ainda zonzo voltou a encarar o irmão que retribuiu o olhar, agora mais sério e soturno. Seu corpo começou uma mutação. Protuberâncias saltavam a pele, as linhas de seu rosto se tornaram proeminentes e o que era delicado e quase andrógeno, se mostrava rude. Asas surgiram de suas costas e os braços alongados exibiam extremidades pontiagudas que mais lembravam espadas afiadas. Kalisto enfim revelou sua verdadeira aparência. Os irmãos se digladiariam até a morte.

Recuperado, Vishal rosnou com violência saltando em direção ao irmão. Kalisto desta vez não esperou e com o bater de suas asas membranosas aloçou voo e em parábola desceu sobre o caçula desafiante. Ambos se chocaram, rolando e agredindo-se mutuamente. Kalisto o levou para o alto arremessando-o contra o solo e neste momento seus olhos notaram minha presença e a intensa luz que emanava de mim.

A luz cálida se expandiu tornando a penumbra em claridade. Subitamente uma alcateia surgiu, adentrando aquele plano através da intensa luz. Fui usado como elo entre as realidades e testemunhei os grandes lupinos avançarem contra os bebedores de sangue, que tentavam ver através da luminescência. Como um aríete colidindo contra o muro de uma fortaleza os lobos abriam caminho entre as fileiras de Kalisto, dilacerando os corpos de seus rivais. Uma barbárie se estabelecia diante de meus olhos.

Hanna acompanhada de seu braço direito, Carmelo, o grande lobo de pelagem escura, deixaram o portal, observando o levante. Kalisto não acreditava no que estava acontecendo. Tomado de espasmo, encarou sua mãe que mantinha um olhar soberbo. O seu bunker havia sido deflagrado, sua insurreição estava por um fio.

Seus acólitos caiam um a um. Os lobos avançavam velozmente cercando o local, impedindo fugas e uma reação mais organizada. Vishal saltou sobre Kalisto cravando suas garras em seu peito. O rasgo na pele era profundo, mas a ferida se fechou logo em seguida, graças a sua regeneração. O lobo voltou a investir, mas foi bloqueado pelo escudo formado pelas asas de Kalisto, que fechadas uma sobre a outra receberam boa parte dos golpes. Expandindo as asas membranosas expeliu o irmão, ganhando algum tempo.

Kalisto, vendo a derrocada de seu exército não tinha nada mais a perder. Avançou velozmente contra o irmão. Poderia abandonar suas pretensões de poder, mas teria a cabeça de seu irmão como prêmio de consolação.

A fera alada caiu sobre Vishal arrastando-o por alguns metros. Segurando o grosso pescoço do irmão caçula, alargou suas asas, usando a grande exporão para perfurar a pele do seu rival. Investindo sucessivas vezes espetava Vishal que agonizava. Kalisto havia esquecido de tudo ao seu redor, importando apenas aquele momento, a derrota de seu irmão. O levaria consigo e teria no sofrimento de sua mãe a grande vitória que lhe faltou no campo de batalha. Vishal debatia-se, tentando se livrar daquele ataque voraz, mas aos poucos, sua vitalidade se esvaia e seus movimentos se tornavam mais lentos.

Antes que o pior pudesse acontecer, Carmelo, saltou sobre o líder dos bebedores de sangue cessando o ataque. Combalido, o caçula de Hanna voltou à sua forma original, perdendo os sentidos. Kalisto rechaçou Carmelo e antes que pudesse dar o golpe derradeiro sobre o irmão, Hanna projetou-se entre os dois, com suas asas expandidas, ostentando toda a sua austeridade.

Kalisto encarou sua mãe e ignorando quem ela era mostrou seus caninos de forma ameaçadora. Ergueu-se saltando em sua direção. Coreografando os movimentos em seus dedos, emanou um feitiço que envolveu o corpo de seu primogênito freando seu ataque suicida. Sem mover-se precipitou-se ao solo. Chegava ao fim a sua peleja. Encarcerado, seus olhos viram o desfecho da contenda. Seus servos foram dizimados. Os grandes lobos arfantes uivaram em uníssono. Aquele momento selou a vitória que Hanna perseguiu. Corpos empilhavam-se enquanto os lupinos carregavam seus companheiros mortos. Carmelo, em sua forma original aproximou-se de Vishal. O caçula, combalido e com o orgulho ferido, sagrou-se vencedor. Encarou o seu irmão como o grande herdeiro do trono da Cidade Escarlate.

Após a euforia da vitória, Hanna, tomada de glória, conduziu seus subordinados de volta para casa. Meus olhos contemplavam o movimento das tropas. A luz ainda emanava seu brilho. Hanna passou por mim, deixando o seu sorriso. Desta vez aquele sorriso exibia toda a sua verdadeira natureza manipuladora. Carmelo vinha logo atrás conduzindo Kalisto, e antes de cruzar os limites que separavam os planos me encarou.

— Você retornará para sua cidade bolorenta, mas não se esqueça, o seu destino ainda nos pertence. — Um sorriso malicioso selou minha sentença.

Quanto a mim, a intensa luz que dominava meu corpo diminuiu, até mergulhar na mais profunda escuridão.

TRAGO (2017) - LIVRO (COMPLETO)Where stories live. Discover now