Segunda-Feira

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Era noite. A lua brilhava minguante e um coiote uivava ao longe. Octávio tinha a cabeça para fora do vagão, observando a proximidade da Sociedade do Sul. Crispim fazia inúmeras perguntas que ninguém se dava ao trabalho de responder, e Hannah me abraçava com força. Com muita força. Ainda bem. Eu estava muito perto de pular do trem e correr de volta para An'angelo.

-Ali está –Octávio disse. –Eu vejo a estação.

Meu coração acelerou-se de uma maneira assustadora. Minhas veias carregavam ansiedade e medo para cada célula do meu corpo. Respirei fundo, apertei a arma em meu bolso e me lembrei o porque de estar fazendo aquilo. Verena, Clícia e Mario. Mãe, pai e o Clube da Primavera. Eu sou a primavera deles. Faço isso por todos. Pela liberdade de escolher seus direitos e o direito de ter liberdade. Nem me dei conta de que eu era a curiosidade e poderia matar todos aqueles gatos. No meu outro bolso estava um papel cuidadosamente dobrado. Abri-o e lutei contra a escuridão para ler seu conteúdo. Era a minha lista. Frente e verso de palavras em azul e vermelho. A maioria das azuis incluía liberdade. A maioria das vermelhas limitava-a. "Ser livre para namorar ou esposar-me na idade que desejar"; "Ser livre para que as roupas expressem aquilo que dejesar, sendo elas do tamanho ou cor que eu bem entender"; "Ser livre para mostrar meus cabelos, braços e pernas em qualquer ambiente". Eu sorri. Aquilo me parecia muito bom. Imaginei Verena com tênis coloridos, cabelos presos e calças jeans. Ela adoraria tudo isso. Clícia gostaria das maquiagens e estilos loucos de cabelos. E Mario se contentaria em poder tocar seu violão em uma praça sem que isso incomodasse ninguém. Talvez gostaria principalmente da liberdade para namorar. Isso se eu não tivesse estragado tudo dormindo incontáveis vezes com o senhor sorriso perfeito.

O trem desacelerou consideravelmente. Meu coração fez o contrário. Eu não sabia o que sentir. Estavamos no último vagão. Quando paramos por completo, Octávio abriu mais a porta e nos ajudou a descer silênciosamente. Começamos a caminhar na direção da estação. A noite estava fria, mas a areia ainda era quente. Ajustei minha mala no ombro quando Crispim acertou seu braço em meu pescoço e me fez colar as costas no vagão. Antes que eu pudesse reclamar, Octávio pediu que todos ficássemos quietos. Mais a frente, uns dez vagões adiante, alguns homens começavam a descarregar mercadoria. Os guardas apenas observavam, sem entusiasmo nenhum. O uniforme cinza e a memória de George perdendo sua perna naquele dia fez meu estômago revirar de raiva e nojo.

-O que fazemos agora? –Hannah sussurrou. –Não podemos voltar, nenhum de nós. Muito menos você, Crispim, com essas roupas.

-Ou, talvez... Essa seja exatamente a resposta –ele disse, afastando-se de mim.

Segurei seu braço desesperadamente, e foi a vez de Hannah pará-lo com um golpe no pescoço.

-Ficou louco? –Eu perguntei. –E se eles nos virem aqui? O que nós fazemos?

-Eu vou distraí-los. Vocês deêm a volta e me esperem em algum lugar à esquerda –ele afastou-se de novo. –Não se preocupem, sou um Grenado, esqueceram? E meu pai morreu a menos de duas semanas atrás.

E ele andou na direção dos homens. Sem pensar muito, Octávio agarrou a mão de Hannah e guou-a para trás do último vagão. Eu odiava nunca ter ninguém para tapar meus olhos ou puxar minha mão, mas segui-os imediatamente. Octávio olhou para ter certeza de que ninguém se encontrava do lado esquerdo do term e sinalizou para nós andarmos. Aquilo era adrenalina pura, como nos filmes de ação que assistia com Octávio. Andávamos grudados nos vagões e nos abaixávamos entre um vagão e outro. Quando passamos perto de Crispim, andamos mais devagar pela curiosidade. A sua conversa deixava nós, gatos, muito curiosos. Maldita seja a curiosidade humana. E maldito seja o sol que esquenta os trilhos de fero. E maldito seja o cadarço desamarrao de meu tênis. Eu caí com as mãos nos trilhos e me queimei. Infelizmente, não pude deixar de gritar pelo susto. Sem pensar duas vezes, Octávio agarrou Hannah e entrou no vagão mais próximo para se esconder. O homem que falava com Crispim olhou diretamente para mim, e eu corri.

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⏰ Last updated: Nov 02, 2016 ⏰

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A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now