Você curioso

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Quero lhe contar uma história. Minha história. A história de como estraguei tudo salvando milhares de vidas que não estavam em risco. A história de como a curiosidade matou o gato. E nesse caso, 'gato' são todas as pessoas que morreram ali porque eu preguei sobre uma realidade diferente. Inocentes entregaram suas almas para que eu as acolhesse num abraço mais apertado do que o que já recebiam à décadas, séculos, quem sabe. Nessa história, o personagem principal é também o vilão, no fim das contas. Mas sinceramente, eu não me culpo por tudo o que aconteceu. A culpa foi toda de Hannah.

Ainda me lembro dos dias felizes em que Hannah e eu corríamos apenas com as roupas de baixo pelo jardim nas tardes quentes de chuva forte enquanto Verena corria apenas de calcinha. Era só um bebê, então qual era o problema? Ninguém nos via, de uma forma ou de outra. Isso era quebrar as regras. Nós pulávamos nas poças e nos enchíamos de lama. Verena caía constantemente, mas logo se punha em pé e nos seguia com um enorme sorriso sujo de terra e água da chuva estampado no rosto de neném. Hannah nos puxava e girava e liderava a brincadeira, que só tinha fim quando mamãe achava que era demais para o bebê. Naquela época tomávamos banho ali mesmo. A chuva era nosso chuveiro. Ficávamos as três em pé na pequena piscina inflável e esfregávamos sabonetes pelo corpo, tomando cuidado para sermos discretas nas partes cobertas pelo biquíni. Ajudávamos Verena e deixávamos a chuva limpar a espuma de nós, para depois entrarmos em casa e sermos recebidas por toalhas sequinhas e um bolo recém saído do forno.

Hannah era como uma Deusa para mim. Três anos mais velha, ela sabia contar, ler e escrever enquanto eu aprendia o alfabeto. Começou a fazer Francês quando eu entrei na primeira série. Verena e eu a venerávamos. Ela escalava as árvores e nós imitávamos. Era sempre ela a ser a líder das nossas brincadeiras e quem decidia o papel de cada um. Os marshmallows maiores do saco eram dela, a cama mais alta, as mochilas escolares mais legais... E eu não reclamava, apenas aceitava, pois admirava Hannah e tudo o que ela fazia.

Quando foi que isso mudou? Quando deixamos de venerar minha irmã mais velha? Resposta simples: Foi quando ela decidiu atravessar a fronteira.

Ela era uma garota muito curiosa. Dizia que, um dia, descobriria que segredos se escondiam do outro lado da fronteira. Quem passava por ali eram pessoas de muita importância, trens de carga e crianças peraltas. Não havia muita segurança nessas fronteiras por que quem saía não voltava. Era deserto lá, até onde os olhos podiam ver. Nós andávamos alguns metros desconhecido à dentro até o dia em que um coiote nos assustou e eu não voltei lá. Eu não via vantagem alguma em explorar aquela área. Ali na Sociedade do Sul, região onde morava, havia várias pequenas cidades com, florestas, montanhas e neve. Para mim não havia lógica em seguir mais uma vez o caminho do trem e voltar para o desconhecido onde um coiote me atacou, mas Hannah voltou. E voltou várias vezes. Ia lá com um amigo e os dois vinham para minha casa fazer planos e listas do que iam precisar para explorar o lugar. Nessa época eu já tinha dez anos, ela, treze.

Não a admirava mais, nem deixava os maiores marshmallows com ela e não ligava mais para malas legais. Passava muito tempo cuidando de Verena e brincando de bonecas com as meninas. Era tudo muito normal na minha vida, até o bilhete de Hannah. Ela tinha dezesseis, eu, treze e Verena onze.

O bilhete estava sob meu travesseiro, endereçado à mim e à Verena. Nós lemos juntas:

"Queridas Kat e V.

Octávio e eu decidimos que já era hora de partirmos em nossa inusitada aventura. Cansamos da vida deprimente, sem graça e opressiva da Sociedade do Sul. Estamos indo até onde nossas pernas nos levarem, seguindo os trilhos do trem. Não se preocupem meninas, eu vou voltar e contar o que descobri. Deixei um outro bilhete para mamãe e papai. Só vocês sabem de toda a verdade, e espero que continue assim. Kat, me espere de braços abertos, pronta para ouvir o que sempre nos perguntamos nas noites de fogueira e marshmallows no quintal: o que tem no fim da linha do trem? E V, pequena, seja boa para mamãe, papai e Kat. Cuide deles enquanto eu estiver fora, sim? Não vou demorar.

Beijos e muito amor, Hannah."

Nunca soube o que estava escrito na carta de mamãe e papai, mas eles choraram muito quando a leram. Mesmo vendo o sofrimento de meus pais, consegui convencer Verena a manter o segredo. Eu fiz o mesmo. Fechei a boca e esperei.

Esperei uma semana. Duas. Três. Minha rotina foi se adaptando ao sumiço de minha irmã. Um mês. Três. Cinco. Ela fazia falta à noite, no jantar e no meu quarto, fora nas tarefas que dividíamos. Primavera, Verão, Outono e Inverno. Um ano inteiro e eu não sentia tanta falta dela. Ela não se fora para sempre, era apenas uma viajem. Uma viajem longa. Bem longa e para bem longe. O quão longe é o desconhecido, exatamente? Eu não sabia e não queria saber.

Verena completou treze anos e eu quinze. Dois Natais. Dois aniversários. Uma noite de eclipse lunar e a melhor colheita de maçãs em dez anos e Hannah não estava lá. Mamãe não estava em depressão mas não era a mesma. A mesma coisa com papai. Verena entendia, graças a Deus. E eu? Eu só estava esperando.

Esperei por mais uma Páscoa e um Dia das Mães. Foi por volta de Junho daquele ano, eu me lembro bem. Tinha voltado da minha aula de violino e tomei um banho. Ainda de cabelo molhado eu andei descalça até a cozinha e peguei uma maçã. Tinha que pegar Verena na aula dela de dança em alguns minutos e resolvi colocar uma maçã para ela na bolsa. Uma batida na porta e meus pés descalços batendo no chão frio. Abri a porta e minha reação foi só ficar ali, parada.

Seus cabelos estavam curtos, as roupas ousadas e a pele pintada e enfeitada. Ela sorriu e eu fiquei ali. Parada. Então tudo, ABSOLUTAMENTE TUDO mudou para mim. Para minha família. E para a toda a Sociedade do Sul.

Quer saber como a curiosidade matou o gato?


Bem-Vindo à Sociedade do Sul! Vou começar a postar regularmente muito em breve.

 Vamos juntos descobrir do que Kat está falando. Conto com seu voto e sus opinião nos comentários! :)

A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now