O trem para casa

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Quero dedicar esse capítulo a thamiresalvina  e seus comentários maravilhosos que sempre alegram meu dia! Muito obrigada (:



Ainda fiquei por mais uma semana e meia em An'angelo, no meu domingo mágico. Continuei com minha rotina perfeita de pesquisa, família e pecados por esse tempo. Acordei deitada ao lado de Crispim no dia da viagem. Minhas malas estavam feitas, esperando na cozinha, prontas para serem colocadas em minhas costas e enfrentar o deserto comigo. Eu estava morta de saudades de minha irmã, Clícia e Mario. Mas eu não queria ir embora. A Sociedade precisava de mim, minha família precisava de mim, mas eu queria An'angelo mais do que tudo. Quase uma mês e meio havia se passado desde minha chegada à cidade e eu queria muito ficar. Lutava comigo mesma para não mudar de ideia. Acho que, se não fosse por Verena, eu não voltaria. Pelo menos não tão cedo. Sentei-me e esfreguei os olhos. Precisava tomar um último banho, ter uma última boa refeição antes de derreter no calor do deserto.

-Preparada? -Crispim sentou-se também, bocejando.

-É claro que não.

Demorei o máximo que consegui no banho. Apreciei cada gota de água que pingava em minha pele, cada bolha de sabonete que estourava por meu corpo, cada essência dos cremes para cabelo. Depois passei quase uma hora de frente para um espelho, arrumando-me. Prendi o cabelo pelo menos uma dúzia de vezes, lavei o rosto e pintei-o com cores do deserto, troquei de roupa até estar tão confortável quanto conseguiria estar: meu vestido cinza da Sociedade do Sul. Estava limpo, com o cheiro do sabão em pó que minha mãe usava nas roupas. Vesti aquilo um tanto relutante, mas recusei-me a colocar o pano sobre minha cabeça. Queria encaixar conticionador, meus brincos e maquiagens na mala, portanto comecei a me desfazer de algumas coisas que começara a julgar desnecessárias. Antes, aquilo era fútil. Agora, eu queria tudo. Quando atingi o fundo do bolso maior, encontrei um papel amassado. Não me lembrava de ter colocado aquilo ali. Desdobrei-o e desamacei-o como consegui para descobrir a caligrafia de Mario em uma carta para mim.

"Querida Kat,

Não sei se chegará a ler isso pois não sei se um dia chegará à cidade do deserto de sua irmã. Mas, se está lendo isso, obrigada. Obrigada por acreditar em mim e aceitar minhas desculpas. Obrigada por ser corajosa e ajudar a Sociedade do Sul a abrir os olhos. E obrigada por ser a melhor pessoa que já tive o prazer de conhecer. Não sei se jamais lerá isso, mas saiba que sua amizade é a coisa mais importante de minha vida, e que você é a pessoa com quem mais me importo em toda a Socidade. Fique tranquila quanto à Verena; protegerei-a sempre, custe o que custar. E, leve o tempo que for, estarei esperando por você e sua irmã na fronteira. Todas as noites. Faça chuva, frio ou calor, eu estarei lá. Por você Kat.

P.S.: Sinto muita falta das tardes em que passávamos juntos, nos divertindo com o que podíamos encontrar. Espero um dia ter esse tempo de volta, ao seu lado.

Mario."

Foi quase impossível ler as últimas linhas, pois estavam inundadas com minhas lágrimas. O nome dele, assinado com capricho no final da folha amassou meu coração, torceu-o e depois deixou-o chorando incontrolavelmente. Havia tanto arrependimento relacionado àquelas cinco letras. E tudo piorou quando Crispim pegou a carta e leu-a sem minha permissão. Ele soltou uma risadinha e perguntou quem era Mario. Minha respota arranhou minha garganta como uma faca, transformou minha saliva em ácido e foi cuspida junto a uma nova cachoeira de lágrimas:

-Ninguém.

-Então levante-se –ele disse, amassando o papel e jogando-o contra a parede. Orgulho me impediu de andar até o papel e guardá-lo. –Já está na hora de irmos.

Respirei fundo e chequei o bolso do meu vestido cinza sem graça. O revólver Smith & Wesson Governor estava bem guaradado ali, torcendo para que não fosse usado pelas mãos dessa louca quem vos fala. Coloquei minha mala no ombro, ignorei a carta de Mario uma última vez e saí do apartamento de Crispim. Deveríamos nos encontrar com Hannah e Octávio na fronteira entre An'angelo –cidade do pecado e das maravilhas- com o deserto –local que pune aquels que buscam pecados e maravilhas-, mas chegamos cedo demais. Ficamos aguardando, tendo uma prévia do calor infernal que nos aguardava.

-Não estou pronta para três ou mais dias de areia e sol.

-Não precisa estar pronta. Não vai enfrentar nada disso. Vamos de trem. -Ele falou como se pegar um trem fosse a coisa mais normal de nossas vidas. –Estamos voltando, não vindo de lá. Até parece que alguém na fronteira com a Sociedade se importará.

Eu ainda não sabia como subiríamos em um trem, mas sorri. Confiava em Crispim e essa possibilidade era linda demais para ser ignorada. Ele segurou meu rosto e disse que adorava meu sorriso. Então beijou-me novamente. Estava aliviada de que deixar An'angelo não era o mesmo que deixar Crispim para trás. Só nos separamos quando ouvimos um pigarreo forçado. Octávio e Hannah nos encaravam com expressões neutras. Não dissemos nada uns para os outros. Deixamos que fossemos envoltos por nossos próprios pensamentos perturbados uma última vez antes de voltar. Então eu percebi que Hannah também havia escolhido o vestido cinza e sem graça do Sul. Corri imediatamente para abraça-la. Hannah raramente demonstrava sentimentos desde a morte de seu filho que nem chegara a ver a luz do sol. Mas agora ela chorava, e eu chorava junto dela. Sem um motivo específico. Eram lágrimas que representavam tudo.

-Vamos por aqui –Crispim falou, começando a caminhar para o lado opsto ao qual eu teria escolhido.

Sem questiona-lo, segui-o, soltando o abraço sofrido que mantivera com minha irmã. Poucos minutos depois, chegamos em uma outra estação de trem, parecida com a de An'angelo. Crispim confirmou que aquele trem estaria na Sociedade do Sul em um dia, e nós entramos escondidos e nos abaixamos atrás de caixas de carga. Nem vale a pena contar sobre como isso tudo aconteceu, foi facil até demais. Quem iria querer sair de An'angelo e migrar para um lugar com zero liberdade? Nenhum de nós conseguia sentr medo de ser pego, nem medo do escuro que se fez após as portas serem fechadas, nem calor e nem frio. Era como se estivéssemos derrotados antes mesmo de começar nossa revolução. Dois amantes de um amor proibido que lastimavam a perda de alguém que nunca conheceriam; um cidadão criado no pecado arriscando-se para ajudar uma causa que não o afetava; e por fim, eu, Katleia Jhonson. Simplesmente eu. Isso era motivo suficiente para desespero.


Olá! E obrigada por continuar a acompanhar A Sociedade do Sul! Desculpem a demora mas ainda está tudo uma bagunça por aqui! Espero poder postar mais bem em breve!

A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now