Prelúdio

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Foram longos minutos gastos explicando para Verena o porque de Hannah estar voltando para An'angelo tão cedo. Meus pais não permitiram que ela tomasse café da manhã em casa. Ela mal teve tempo de desfazer as malas. Tomou um banho, repôs seu estoque de água e comida de despediu-se de V. Eu andei junto dela pelas ruas da Sociedade do Sul. Ou quase. Ela me guiou por um caminho escondido, evitando os maiores grupos de pessoas e ruas principais. Eu queria muito perguntar mais, saber sobre tudo, mas não disse nada. Nem ao menos me dei ao trabalho de perguntar para onde estávamos indo. Paramos em frente a uma casa que não me era estranha: a de Octávio. Ele estava sentado nos degraus de entrada com a mochila nas costas. Os pais dele também não haviam aderido à ideia da nova cidade. Minha irmã correu para seus braços e abraçou-o por um longo tempo. Eu atravessei a rua calmamente.

-Kat, precisamos de ajuda –Hannah falou. -Parece loucura e idiotice, mas An'angelo é mesmo uma cidade maravilhosa. Sei que papai e mamãe seriam muito mais feliz lá, mais livres, mais cheios de vida. Principalmente agora que me contou tudo sobre as brigas que tiveram. Lá tem até pessoas que trabalham com relacionamentos.

-Não precisa me convencer de nada –eu falei. –Confio em você. Porém duvido que eles queiram deixar tradição e cultura para ir em busca de uma promessa tão surreal.

-O que seus pais acharam? –ela perguntou para Octávio.

-O mesmo. Não vão nos aceitar de volta e não gostam de nossas propostas. São velhos e suas cabeças não funcionam ao som da palavra "novo".

-Mas o que significa isso?

Nós viramos nossas cabeças na direção da voz. Era um homem de chapéu conduzindo uma carroça cheia de sacos de batata. Ele desceu e andou para perto de nós. Fez uma careta quando nos reconheceu.

-As Johnson e o Reedel. Achei que estavam mortos. Parece que perdi uma aposta –o velho chegou ainda mais perto e analisou o jeito diferente de Hannah e Octávio. –Pecadores imundos.

Cuspiu aos pés deles e virou de costas. A esse ponto, uma pequena multidão já havia se formado. A rua de Octávio não era das mais movimentadas, mas não demorou nada para que muitas pessoas aparecessem e se juntassem à bagunça. Eu não disse uma palavra durante toda a confusão. Foi Represália quem falou por mim. Essa situação toda já estava me deixando nervosa. Represália não deixaria que Cuspe nos pés de minha irmã grávida passasse sem consequências. Como 30 dias antes de Hannah, na praça da prefeitura, Represália gritou, e gritou muito. Acidentalmente mencionou o bebê que estava a caminho e isso piorou tudo. Não vi quem foi, mas alguém iniciou uma uerra de batatas contra nós. "Vergonha"; "Desgraça"; "Humilhação para nosso povo" eram frases que brandiam enquanto nos atacavam. Naquele dia, ninguém ficou do nosso lado. Estavam tão assustados quanto eu ficara ao ver os dois tão coloridos e tão ousados. Em compensasão, algumas pessoas não fizeram nada. Não gritaram e não atiraram batatas. Ficaram paradas, admirando o show de Reresália e possivelmente ponderando sobre o que era certo, o que era errado e quem decidia isso.

Nós três, em clara desvantagem, começamos a correr. Eu guiava-nos diretamente para a única pessoa em quem confiava naquele momento: Clícia. Entramos pelos fundos e ela nos escondeu no porão, para não ter perigo de sua mãe nos pegar ali. Explicamos tudo para ela. Hannah balançava a cabeça negativamente de um modo frenético, até levantar e dizer que precisava voltar para An'angelo.

-O que vamos fazer? –Hannah agarrou os braços do pai de seu filho. –Não podemos ficar, mas não posso sair e nunca mais ver minha família.

-Hannah, não podemos levá-los até lá contra a vontade deles. Não vão para An'angelo –Octavio disse, calmo.

-Então traremos An'angelo até eles –eu falei.

Infelizmente, ninguém percebeu a inocência e determinação na minha voz. Aquelas palavras iniciaram todo o meu plano, toda a ideia estúpida de que eu sabia o que era melhor para todos. Eu fiquei estupidamente animada e corri para ligar para Mario. Um plano começou a se formar em minha mente. Quando ele atendeu, perguntou o que eu queria. Só precisei de uma palavra, um nome, e ele me concordou em nos encontrar na fronteira entre a Sociedade do Sul e o desconhecido. Não tivemos problemas físicos para chegar até lá. Àquela altura, todos sabiam que Hannah estava de volta, e atacaram-nos com olhares de desprezo, palavras más e mais cuspe. A reação de Mario ao ver minha irmã e Octávio foi a mesma que a minha. Pedi que Hannah contasse tudo para ele. Para minha sorte, a reação dele para a história também foi a mesma que a minha. Ele queria saber mais, saber de tudo. Então pude contar sobre meu plano completo. Contei para Hannah sobre o dia em que criei a Filosofia do Horizonte e do Arco-íris.

-Existem pessoas na Sociedade do Sul que apoiariam uma mudança. Tudo o que precisamos é de uma causa mais concreta –eu estava muito animada. –Dessa forma, não estaremos levando uma vida melhor apenas para nossos pais, mas para toda a Sociedade do Sul e as gerações que estão por vir.

-O que está dizendo? -Hannah acariciou sua barriga.

-Eu vou para lá. Ficar lá por um tempo e trazer o que a Sociedade do Sul precisa. Viu o que aconteceu hoje, não viu? Embora tenha gritado por cores e liberdade, talvez isso seja demais –apontei para suas roupas. –Vou em busca de uma liberdade moderada e começaremos daí.

-Kat, isso é loucura –Mario tentava colocar algum bom-senso em minha cabeça.

-Não, não é. Veja bem: tudo o que preciso fazer é conseguir que algumas pessoas estejam abertas a dar uma chance para uma nova vida. Eu viajo até Hannah e coleto ideias para trazer de volta e implantar por aqui.

-Isso não pode dar certo, como... –Hannah não conseguiu terminar a frase. Eu encarei aquilo como se meu plano não tivesse falhas.

-Pode parecer louco, mas não tentar seria hipocrisia. Eu defendi essa causa mais de uma vez, zelo pelo bem estar de meus pais, e quando descubro que isso tudo existe, que isso tudo é verdade, eu não faço nada a respeito? Se existe uma chance, por menor que seja, deveríamos tentar. Por vocês, por nós e por todos.

Ninguém sabia o que dizer. Inconscientemente, eu os deixei sem outra saída a não ser concordar. Se discordassem ou argumentassem, estariam sendo hipócritas e egoístas. Não só contra a Sociedade inteira, mas contra sua própria famílias. Hannah e Octávio se encararam.

-Não custa tentar, eu acho. E o que temos que fazer?

-Esperar.

Não era dia de entregas e ninguém se importava se nós saíssemos ou não. Nós cinco ficamos parados por um tempo, olhando para o horizonte. Aquilo era tudo o que eu via. Hannah e Octávio viam além dele. O horizonte deles era maior do que o meu.

-Vejo vocês em um mês –eu disse.

-Tome cuidado -minha irmã me abraçou. –Estaremos te esperando.

-Não faça nenhuma loucura –Octávio tocou o pano de minha cabeça de leve.

E eles foram embora. Ficamos parados ali até eles sumirem no nosso Horizonte limitado. Eu estava muito animada, muito feliz e já com saudades. O mundo do teatro de Verena existia, seguindo sempre pela esquerda dos trilhos. Eu seria a responsável por oferecer e trazê-lo até a Sociedade.

-O que fazemos agora? –Mario perguntou.

-Iniciamos uma revolução –respondi.

-Sim, não deve ser difícil –Clícia sorriu. Mario e eu a encaramos como se tivesse enlouquecido –Sei exatamente onde podemos começar.


A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now