770 dias antes de Hannah

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Esse é o ponto da história onde o monstro dentro de mim resolve dar um olá desesperado para o mundo e deixar de brinde uma nova Katleia. Aquela que apenas Mario e eu conhecíamos, lembra-se? A Kat sem Hannah. O nome do monstro, como prometido, é Represália. Nesse ponto da história, pelo menos. Ele muda de nome mais para a frente, fica mais perigoso. Mas por enquanto, foque neste que lhes apresento.

Antes de contar o que aconteceu naquele dia, quero que saibam quem era a Kat com Hannah, antes de Represália. Eu era a filha do meio. A típica filha do meio. Ninguém me dava atenção. O mais velho conquistava algo difícil e todos comemoravam. A mais nova fazia algo fofo e todas comemoravam. Eu era a filha do meio. Fofa era Verena. Prodígio era Hannah. Nada que eu fazia era impressionante. Eu era a pessoa mais "sem sal" de toda a Sociedade do Sul. Coloco a culpa de minha rebeldia no infortúneo de meu nascimento como criança do meio. Acho que esqueci de mencionar isso antes, embora já devem ter reparado, mas eu raramente coloco a culpa em mim. É sempre culpa de outra pessoa. Como Hannah, por exemplo.

Enfim, filha do meio, criança rebelde. Adivinhem: Mario também era a criança do meio. Eramos dois "sem sal" rebeldes que se divertiam juntos. Corriamos pela casa toda, roubavamos pães de meus pais e chocolates dos irmãos deles. Subíamos em árvores e atirávamos pedras nas portas dos vizinhos. Chegando perto do perigo, aproveitando a emoção. Sempre fui assim. Era também muito cuidadosa e carinhosa. Por causa de Verena, eu acho. Nunca bati em ninguém antes de Hannah sumir. Para a sociedade, eu era um exemplo a se seguir. Quieta, estudiosa, roupas impecáveis. Perto de minha irmã e Mario, era eu mesma. Mas aqui vai um segredo sobre filhos do meio e rebeldes: só queremos atenção; então quando a ganhamos, desconfiamos ou aproveitamos. Quando Hannah sumiu, eu apenas desconfiava de toda e qualquer atenção que recebia. Fora uma boa escolha.

770 dias antes de Hannah voltar, eu arranquei sangue de um amigo. Eu não, Represália. O melhor amigo de Mario chamava-se Galileu. Seus pais trabalhavam para o governador da Sociedade do Sul. Não diretamente, mas estavam sempre na prefeitura. Seus tios moravam no topo da Kajii. Ou seja, ele era rico e mimado. Não eramos verdadeiramente amigos, mas nos respeitávamos. Ele desceu na estação com Mario e eu pois iria ficar na casa do amigo para algum trabalho ou sei lá. A questão é que ele estava se tornando mestre em me irritar.

No último mês ele tinha ganhado uma nova reputação. Ele não era mais o cara que emprestava os trabalhos de matemática, mas o cara com detalhes sobre mim. Não sei se ele mesmo inventava as coisas que dizia ou apenas distorcia aquilo que o povo fazia o favor de inventar, mas ele se deu bem. Muito bem, eu acredito.

-Quem é? –a voz era de Galileu.

-Quem é o que? –eu perguntei, realmente confusa.

Uma pequena multidão de alunos e passageiros foi se formando ao nosso redor. O ar cheirava a curiosidade. Aposto que todos sabiam que a curiosidade matou o gato, mas não estavam nem aí.

-Sabemos que é só questão de tempo, Katleia Johnson, até você seguir os passos de sua irmã e fugir daqui em busca... De quê mesmo? Uma vida de aventuras, sem regras, sem preocupações...

-Como pode dizer isso, Galileu? –algumas lágrimas chatas queriam saltar de meu rosto nessa hora. Eu fui forte e as segurei.

-O que todos querem mesmo saber é quem vai te acompanhar nessa viagem? Quem vai te apresentar os maiores prazeres da vida? Quem vai te guiar por essa jornada de descobertas? Por que todos sabemos que você só tem dois "grandes amigos". Eu, que, é claro, me recuso a desonrar minha família, ou Mario, que, até onde nós sabemos, não é idiota a ponto de abandonar uma vida aqui para criar uma nova com... você.

Aí as lágrimas já não tinham como não escorrer. Eu até estava aceitando ele falar bobagens de mim, mas afirmar que eu não tinha mais amigos e que tanto eu quanto minha irmã desonramos a família, na frente de todas aquelas pessoas, me fez perder totalmente qualquer afeição que eu ainda tinha por ele. E Mario, que me assistia chorar, não fez absolutamente nada. Talvez assim tenha até sido melhor. As pessoas começaram a atirar coisas em mim e me xingar de todos os piores nomes que conheciam. Até ai eu podia aguentar. O que veio a seguir fez Represália tomar conta de mim inteiramente pela primeira vez.

-E essa baixinha? Quando ela vai seguir os passos de sua família imunda?

Voei em cima dele sem pensar duas vezes. Derrubei tudo o que carregava no chão e acertei um soco no nariz dele. Caímos juntos e eu continuaei a ataca-lo. Pessoas gritaram, me xingaram, tentaram me tirar de cima dele, mas Represália era muito mais forte do que os outros. Eu não me lembro de quanto tempo fiquei ali, acertando seu rosto mimado com meu punho. Viajei pela ira e caí num mar de ódio que me tirou no mundo real. Fale de mim, mas nunca de minha família. O chão ficou manchado com gotas de sangue. Minhas mãos também. Verena havia se escondido, graças a Deus. Eu limpei minhas mãos que tremiam insanamente, recolhi minhas coisas e puxei minha irmã para minha casa.

Mamãe e papai não ficaram felizes quando descobriram, mas não me culparam, não disseram nada. Pegaram o tempo que gastariam me dando sermão explicando tudo para Verena. Ocupados de mais lamentando os boatos, esqueceram de mim. A única com quem eu poderia contar estava à quilômetros de mim. Meus amigos me humilharam, minha família me ignorou, o povo me odiava. Eu não tinha ninguém.

Perdi totalmente a fé que demorei anos para depositar em quem eu supostamente poderia confiar. E conheci Represália. Naquela noite, antes de vestir minha camisola para dormir, encarei meu reflexo no espelho velho e sujo de meu banheiro. Por que eu via Katelia, e não Represália? Onde ela estava, para onde teria ido? Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Tive medo. De mim mesma, de tudo o que falariam de nós agora. Temi por Verena.

Ah! Quase me esqueci. Represália escolhera o dia perfeito para aparecer, sabiam? Era meu décimo quarto aniversário. Ganhei bolo? Um sapato novo? Talvez um creme? Não, claro que não. Não ganhei nada, eu dei. Presenteei a Sociedade do Sul com a nova Kat. A Kat sem Hannah. Represália.

Feliz aniversário, aberração.


Olá curiosos e curiosas! Como estou me saindo até então com A Sociedade do Sul? Estou gostando muito de escrever, espero que estjam gostando de ler :)

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