182 Dias Antes de Hannah

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182 dias são seis meses. Seis meses equivale a meio ano. Já era Dezembro novamente e nós estávamos comemorando. Podem acreditar nisso? Felicidade, bolo, família reunida... Esávamos comemorando o primeiro recital de ballet de Verena. Ela não era apenas a mais nova da turma dela, como a dançarina principal. Ela era o novo orgulho da família.

Hannah falava francês, tirava notas boas, era comportada em público. Isso não importava. Não mais. Verena dançava muito bem, fora convidada para participar de outros recitais com outros grupos, para fazer apresentações para o público. Eu? A mesma. Aliás, nada de Represália nesses últimos meses, nem mesmo um pequeno pulso, ou bater do coração.

Mangas compridas, gola alta, meia grossa, coque escondido por um pano no mesmo tom de rosa do resto do uniforme. E a saia rodada rosa escura. Ela estava uma graça naqeulas roupas, dançando para nós, executando seus passos novos. Uma perna para cima, uma pirueta, um espacate. Sua expressividade era impressionante. Ballet e pintura eram as únicas artes permitidas para mulheres ali na Sociedade do Sul. O resto era para homens. Esportes, esculturas, programas de rádio... Tudo para homens. Nós mulheres podíamos fazer participações especiais, paricipar das torcidas organizadas, mas tudo sob a supervisão de um homem. A prmeira vez que pensei o quanto isso poderia ser injusto foi seis meses antes de Hannah.

Minha tia, por exemplo. Falava muito bem. Trabalhava de secretária para um jornal no centro, estava sempre muito bem antenada nas atualidades. Sua voz era linda, por que não podia ter seu próprio programa de rádio? Todos adorariam, tenho certeza.

E coletores de maçã, como meu tio? Eu sabia correr, escalar, carregar peso e escorregar com coisas na costas. Fazia isso com bebê Verena com muita frequência. Eu seria uma ótima coletora. Também não temia ficar presa do outro lado da cerca. Certo, talvez não gostasse de coiotes, mas poderia viver com esquilos e insetos por uma noite.

E padeira? Minha mãe era padeira! Não oficialmente, claro. Era proibido. Tudo era proibido. Mas ela ajudava meu pai quando os outros funcionários não estavam. Preparava as massas, moldava, colocava no forno. Eu e minhas irmãs ajudávamos também, sem o segredo. "Deixem minhas filhas verem o que o pai sabe fazer. Venham rechear os panetones comigo!" Eu era boa naquilo, ele mesmo havia dito.

E uma oficial da justiça? Ao que parece, tudo o que tinha que fazer era fechar o portão e ignorar pessoas sofrendo numa praça pública. E o voto, por que não podia eu escolher meu representante? Só homens, homens isso, homens aquilo, mas que droga!

E por que o contrário também não podia acontecer? Homens trabalharem em casa e dançarem ballet? Fausto Hiro era um funcionário de meu pai, jovem, que trabalhava mais com limpeza dos equipamentos, por mais que algumas funcionárias existissem para esse serviço. Lembrem-se de Fausto Hiro, ok? Eu via em seus olhos sua decepção em estar ali. Não era o que ele queria. Mas o que importa é que ele limpava muito bem. E se quisesse simplesmente desistir de tudo e cuidar de sua casa, qual o problema? Por que tudo naquele lugar era pecado? Afinal, o que é um pecado? Ninguém nos obrigava a frequentar igrjeas. Ninguém nos educava sobre pecados e deuses. Tudo o que eu sabia era que havia uma divindade nos julgando de forma suprema, e que, para encontrar paz no fim de nossas vidas, tinhamos que obedecer as ordens Dele, portanto, obedecer as ordens da Sociedade.

-Kat.

A voz de minha irmãzinha me acordou. Ela me puxou para fora de casa, entramos no carro de meu tio e dirigimos montanha a baixo. Demoramos pelo menos uma hora e meia para chegar até a praça em frente à prefeitura. O prédio era grande, três andares, pintado de branco, janelas grandes e uma única varanda no segundo andar. A praça tinha uma rosa dos ventos enorme de mosaico no chão. O Sul apontava para o prédio e era a palavra com mais destaque ali. Não havia nada mais que poderia ser mencionado ali. Chão de ladrilhos, a escada para a porta principal da prefeitura e nada mais. A rua passava logo ali, alguns guardas de plantão vinte e quatro horas por dia. Lembrem-se dessa praça. Era ali que comemorava-se... tudo. Por tanto, foi ali que comemorou-se o imenso sucesso da apresentação do grupo de Ballet de Verena.

Para esclarecer, essa parte da história tem dois focos princiais: A compreenção de que a Sociedade era injusta, e o jantar. Pensando bem agora, seis meses antes de Hannah eu vivi o dia mais importante de minha vida. Ele mudou tudo. Se eu não tivesse pensado naquilo, talvez não pensaria que entendia o mundo. Certo, perdão, estou me adiantando e te confundindo. O jantar. Foi lá que conheci o homem que mais odiei em toda a minha vida.

Primeiro houve a comemoração normal, aberta ao público. Uma prévia da aprensentação com as outras bailarinas, um discurso da professora, o governador feliz pelo sucesso delas. E comida, claro. Tivemos comida ali também. Mas o jantar veio depois, exclusivo para a professora de Ballet e seu marido e a família de Verena. Aquela foi a primeira vez que alguém fora da minha casa viu meus cabelos. Lembram-se de que falei sobre os cabelos? Estão sempre debixo de panos, a não ser que seja uma ocasião como um jantar com o governador. Até ali, eu não fazia ideia do que seria um cabelo "bonito" ou arrumado. Só que não deveria haver nenhum nó.

Naquela noite correu tudo bem. Quase tudo. O governador lamentou a "perda" de Hannah, desculpou-se em nome de toda a Sociedade e brindou Verena. Falou algumas coisas sobre a professora, mas eu nem ouvi. Mencionei que aquela também fora a primeira vez que brindei por qualquer coisa? E a primeira vez que me deixaram experimentar champagne. Odiei. E detestei que aquele fora o lugar de tantas "primeiras vezes". E também o último lugar.

Eu não podia deixar de pensar em como seria morar ali. E eu conhecia apenas a sala de jantar. Era no primeiro andar da prefeitura. As janelas eram enormes, iam do chão ao teto divididas em quadrados por bordas brancas. A mesa era maior do que meu quarto. A toalha mais branca que meus dentes, iluminada pela luz amarela do lustre que com certeza era mais caro do que todos os meus pertences juntos. Dois vasos de planta estavam nas extremidades das janelas, deixando tudo tão bonito que me deixava nervosa. Não sabia se estava respirando da maneira correta. Estava certa de que uma divindade escondia-se na cozinha e preparava pratos de Céu para nós convidados. Até ali, estava tudo bem. O que me fez começar a odiar o governador da Sociedade do Sul foi o fato de ele tentar me convencer a afastar-me ainda mais de Hannah. Ele também desconfiava de mim.

-Sua Verena é uma estrela, senhor Johnson. O talento dela transpassa as fronteiras –ele disse olhando para mim. –É seguro dizer que ela não deve nunca abandonar esse sonho. Não apenas por ela, mas por toda a Sociedade. Deve-se pensar em todos nós, além de si mesmo. E na famíia, é claro. Que bela... repercussão positiva isso trará para os Johnsons!

Meu pai apenas riu e concordou. Verena olhou para minha mãe, confusa, e as duas concordaram. Eu fechei o rosto e parei de comer. Ele falou cada uma daquelas palavras olhando diretamente para mim. Eu tinha apenas quinze anos, sim, mas já sabia interpretar mensagens como aquela. "transpassa as fronteiras", "pensar não só em si, mas na Sociedade e na família", "repercussão positiva para os Johnsons". Ele também acreditava que eu sairia, que seria a "próxima Hannah". No começo, fiquei brava com ele e apenas brava. Depois veio a dúvida: e daí? E se eu saísse? O que o governador da Sociedade do Sul tem a ver com isso? Talvez eu fosse e nunca voltasse, talvez morresse, talvez nem fosse, mas o que ele tem com minha decisão? Achei mesmo que essa história de "próxima Hannah" já tivesse acabdo, mas até mesmo o governador ainda acreditava nisso.

Eu o odiei a partir daquele dia, e continuei a odiá-lo até o fim de meu tempo na Terra.


Quero agradecer pelas mais de 500 leituras! Isso me deixa muito feliz! Obrigada, de verdade!

A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now