903 dias antes de Hannah

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Você, que me ouve, que me lê, que me vê, não importa. Você sabe que está se condenando, não sabe? Já entendeu que a curiosidade matou o gato e você é um curioso. A minha história é como um comercial de um aparelho de tirar pelos do ouvido. Sim. É insignificante à esse ponto, mas a comparação virá ao final, onde tudo fará mais sentido. Só prometa uma coisa. Prometa que não vai sair da sua zona de conforto e enfrentar um mal que não existe apenas para fazer com que se sinta melhor. Se as coisas estão boas, não mexa nelas. Se estamos dando certo, não precisamos evoluir. Os índios que se isolam na floresta são mais felizes do que nós que nos comparamos uns aos outros para que continuemos crescendo e crescendo... Só me prometa que vai parar. Pare de crescer se já vimos que o mundo só aguenta até certo peso. Não crie um problema. Não queira evoluir só porque o futuro é fascinante.

Para entenderem, devo voltar para muito antes de Hannah. Para o início da Sociedade do Sul.

Nosso fundador conquistou uma área muito grande de terra com todos os recursos necessários. Sim nós exportamos e também importamos, mas somos bastante autossuficientes. Não somos um país, mas funcionamos quase assim. Divididos em pequenas cidades, cada uma com uma função. Nas montanhas nós plantávamos os grãos e produzíamos produtos com eles, como pães e essas coisas, além da exploração de minérios. Nos campos e florestas nós colhíamos e caçávamos, além das criações de gado e outros animas para abatermos. Onde nosso rio principal caía numa cachoeira, nós pescávamos e gerávamos energia. Ele era também nossa praia. Os tecidos eram quase todos importados então as roupas e utensílios eram todas caras. Produtos de beleza e de banho também. Supérfulos.

O povo era muito conservador. Não conhecíamos tatuagens, peircings nem shorts e vestidos muito curtos. Todos os lugares tinham uma roupa apropriada. Escolas, trabalhos, praças. TODOS. As meninas só cortam o cabelo quando este atinge a cintura, e não pode ser mais curto do que o pescoço, porém devem estar sempre presos e cobertos por um pano. Mulheres usam vestidos e trabalham para sustentar famílias, em casas. Homens vestem camisas, calças e chapéus e trabalhavam para sustentar a sociedade. Tudo era pecado naquele mundo frio. Faça uma coisa errada e veja a si mesmo expulso. Colocado junto de sua sorte no desrto, não podendo voltar nunca mais.

Meus pais são da montanha. Cresci ali, onde a neve cai primeiro. Eles têm uma padaria e todas as manhãs eu acordava com o cheiro delicioso de pão fresco. Nós da montanha tínhamos um jeito único de nos cumprimentar: com as chaminés. Se havia fumaça na chaminé, sua família já estava acordada e dizia bom dia para todos os outros. Eu saía cedo para a escola e caminhava pela neve ou pela grama, depende da época do ano, e todas as chaminés me cumprimentavam. Era bonito.

A história oficialmente começa 903 dias antes de Hannah voltar, uma semana depois de ela sumir, na floresta, com uma cesta cheia de maçãs e um homem correndo. É a história de como eu comecei a perder a fé nas pessoas. Estava ventando muito forte naquela tarde.

Enquanto meus pais eram da montanha, meus tios moravam próximos à cidade grande. Meu tio trabalhava nos pomares, colhendo e plantando. Havia portões entre a cidade e o pomar. Grandes retângulos de concreto branco nos separando da natureza. A base dele era toda cheia de pregos para se infiltrar bem no chão e evitar qualquer possibilidade de animais selvagens entrarem na cidade. Meu tio veio correndo com uma cesta de maçãs nas costas. Avistou os portões alguns metros à frente e isso lhe deu energia para correr mais rápido. Se os portões se fechassem por completo, ficaria ali até o dia seguinte, quando fossem abertos novamente para mais um dia de colheita. E ele estava se movendo. Lentamente se fechando e o deixando para trás. Estava apenas a um metro do chão. Meu tio tinha tinha no mínimo um e setenta.

Meu tio acelerou, jogou sua cesta por debaixo do portão e escorregou junto dela. Era uma situação extremamente normal, então ele caminhou até nós e nos viramos para andar, quando uma mulher começou a gritar pelo marido George.

Meus tios se viraram e encararam o portão. "Essa não." Exclamaram. A cesta do tal George passou por debaixo do portão, em seguida a cabeça dele. O tronco. A coxa. E o portão fechou. Os pregos não diferenciaram a terra da carne. Mamãe tapou os olhos de Verena. Minha tia, meu tio e meu pai correram para ajudar o homem que tinha a canela sendo esmagada pelos pregos. Não havia ninguém para tapar meus olhos. George teve a perna amputada ali mesmo, eu fiquei sabendo mais tarde. Ele está bem hoje. Acho. Um pequeno detalhe –pequeno porém importante detalhe- se destacou para mim nesse dia. Não foi o sangue da perna dele. Nem o desespero dele e da mulher. Foi o olhar de indiferença dos guardas que estavam próximos ao incidente.

O papel deles era apenas fechar o portão e esvaziar a praça, mandando todos para suas casas e checar o carregamento fruto das colheitas. Mas ele era um oficial da lei, pronto para nos proteger. Então porque eles simplesmente olharam? Vestiam um uniforme cinza e um chapéu da mesma cor. Quando o portão se fechou em George, os dois só olharam de lado e foram checar o carregamento. "Desalmados" eu pensei.

Na epoca eu não entendia, mas descobri com o tempo. Os guardas da Socedade do Sul não estavam ali para proteger os cidadãos. Estavam protegendo a sociedade. Não individualmente, como humanos deveriam fazer, mas num geral. A Sociedade, o lugar, a qualidade de vida. Se eu tivesse entendido isso tudo antes, não teria matado tantas pessoas. Criança idiota. Começei a perder a fé nas pessoas neste dia. Essa fé extinguiu-se por completo quando descobri a verdade sobre a verdade que inventei, quando perdi a fé em mim mesma. Mas assim estou pulando muito da história, encaminhando-o para o fim. Não é essa minha intenção.

Lembre-se de que George é o símbolo de minha descrença. Cinza é a cor que dei a ela.


E então curiosos... O que estão achando? Esse é só o começo ;)

A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now