O sino que ecoou para sempre

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O trem seguiu pela direita em certo ponto. Eu pulei dele desesperadamente. Me ralei, cortei e torci o pulso, mas continuei andando. Já havia perdido a noção do tempo. Hannah havia dito cinco dias. Para mim, já estava ali ha semanas. Esperava que a carona no trem tivesse diminuido a viagem consideravelmente. Não fazia ideia de quanto tempo tinha aguentado pendurada ali, nem quanto tempo mais teria aguentado. Tinha bons motivos para não ter trazido ninguém do clube da primavera, mas me arrependi. Falar sozinha era triste e eu comecei a andar e chorar ao mesmo tempo. Então vieram os delírios mais sérios.

Primeiro achei que tinha visto uma pessoa. Quando tive certeza de que era Verena, soube que estava delirando. Ela estava em ótimas condições, saltitando pela areia e cantarolando. Isso era impossível. Por mais que quis correr para ela, eu segui em frente. E chorei mais. Vi também duas palmeiras e um pequeno lago, mas não fui corajosa o suficiente para conferir se era real ou não. Continuei andando com lágrimas escorrendo por meus olhos como uma cachoeira.

Sei que eu gostava do sol dos domingos, de banhar-me de luz e não ser tão pálida quanto os outros da montanha, mas o sol do deserto era diferente. Eu Sentia todas as parte do meu corpo suando e queimando. Tinha o pano cobrindo meus cabelos e protegendo minha cabeça. A mochila pesava 10 vezes mais a cada passo que eu dava, e o estoque de água parecia ser insuficiente sempre que eu tomava um gole. Tudo doía, incluíndo minha alma. O quão longe era o desconhecido?

Se já não estava louca antes, então foi nesse momento que fiquei. Eu joguei todos os meus pertences no chão e gritei. Ajoelhei-me e puxei meus cabelos com todas as minhas forças reunidas. Chutei minha mochila, arranhei meus braços, rodei parada no lugar até finalmente me deitar sob o trilho do trem. O ferro não estava quente. Estava fervendo. Deixei que minha nuca e coxas se queimassem por um momento, até eu levantar com a dor e chutar o trilho também. Acreditei por um bom tempo que aquele era meu castigo; imposto a mim por mim mesma. Eu estava agindo contra as regras. Você sempre será punido, sendo uma punição aplicada pela "justiça" ou pela própria vida. Consegui responder às perguntas feitas no dia do aniversário de Hannah: Não, você não precisa seguir nenhuma regra. Você nunca precisa. E sim pode haver punição no desconhecido. Porque algumas atitudes terão sempre uma consequência, não importa aonde você esteja.

Quando minhas esperanças estavam prestes a estinguir-se; quando eu estava a ponto de me deitar nos trilhos e esperar que um trem me atropelasse, eu avistei algo ao longe. A imagem tremia devido ao calor do solo arenoso. Era uma placa velha, de madeira, onde lia-se: "An'angelo". Eu chorei descontroladamente. Lágrims de alívio. Atrás da placa havia uma torre com um sino em cima. Atrás dos dois elementos tudo era surreal de mais para mim. Eu pensei ser uma miragem. Era bom demais para estar acontecendo a uma pecadora como eu. Porém, conforme fui me aproximando, acreditei realmente que era real. E então ouvi o sino.

Ele ecoou em meus ouvidos e eu soube que tinha chegado. Eu finalemte atingi esse objetivo. Confirmei a Teoria do Arco-Íris e do Horizonte. O horizonte pode ser infinito, e o arco-íris pode existir, se deixarem que você siga seus sonhos. Eu sempre quis saber o que havia no final da linha do trem. Agora tinha novos horizontes para me aventurar. Tudo era colorido e maravilhoso; meu novo arco-íris. Junto do sino, uma voz masculina gritava: Sulista! Sulista!

O som do sino foi tão reconfortante para mim que eu nem fiquei preocupada ou com medo. Deixei que ele anunciasse minha chegada e que outros aparecessem para me ver. Todos curiosos. Até então, eles eram os gatos, eu, a curiosidade. Esse status muda muito rapidamente. Uma pessoa aproximou-se de mim e perguntou se eu estava bem. Fiquei tão aliviada, tão feliz de ver alguém que permiti-me desmaiar. Arrependo-me de não saber quem me ajudou a entrar num local fresco, me dar água, e chamar minha irmã. Queria ter agradecido.

Quando acordei, no chão de um lugar muito iluminado, fresco e cheio de prateleiras e gôndolas, Hannah pulou em cima de mim e me apertou até perder o fôlego. Eu não consegui ignorar as pessoas ao nosso redor. Não por que estavam nos encarando, não porque era constrangedor, não porque pareciam mais do que acostumados com a situação, mas porque todas se arrumavam como Hannah. Cores, brilho e desenhos na pele. Meu coração acelerou-se. Hannah deu risada.

-Estou tão feliz por ter você aqui –ela disse. –Vou te levar para casa.

Ela me guiou para não muito longe dali. Não prestei muita atenção nas coisas no caminho. Meus olhos queimavam do deserto. Entramos num lugar muito alto. Hannah disse que chamavam de prédio, mas não era grande como a prefeitura do Sul. A construção tinha muito mais do que três andares, janelas padronizadas e uma pintura velha. Minha irmã disse que muitas famílias moravam ali ao mesmo tempo. Ela dividia o apartamento com uma moça que trabalhava durante o dia. Octavio estava lá para me receber com pães, frutas e água. Muita água.

Hannah guiou-me até o banheiro de sua casa e me explicou que o da esquerda era água quente e o da direita água fria. Eu nem ouvi direito as instruções de como tomar um banho. Lembram-se dos cremes caros no mercado de importados? Os shampoos, hidratantes e outras coisas caras? Hannah tinha uma coleção deles. Eu mal sabia o que era um condicionador de cabelos. Ela tinha um pote que dizia "sabonete líquido". Sem dúvidas, aquele foi o banho mais maravilhoso de toda a minha vida. Aliviou-me do calor do deserto e me limpou de uma forma que eu mal sabia ser possível. Descobri novos arranhões, cortes e queimaduras. Hannah me emprestou um sutiã vermelho que fazia com que meus seios parecessem maiores e mais redondos, entrou no banheiro e aplicou cremes nos meus machucados. Fiquei aliviada. Emprestou-me também um vestido. Não um que se usava na Sociedade do Sul, mas um florido, curto e que deixava toda a extensão de meus braços exposta. Ela sorriu e disse que era normal. Ainda assim preferi colocar um pano sob meus ombros; Octavio estava ali. Ela também aproveitou e prendeu meus cabelos, como eu fazia com os de Verena. Esperei que ela os escondesse debaixo de um segundo pano, mas ela não o fez.

-Precisa de um corte –comentou. –Conte-me: como estão as coisas por lá?

Eu juntei toda a minha coragem para segui-la até a cozinha vestida daquele jeito. Ignorei meu desconforto e contei-lhe tudo sobre o clube da Primavera. Também detalhei minha viagem e depois ela contou sobre a gravidez.

-E o que você faz agora? Quando voltamos para o Sul?

-Não pretendo levar muito tempo por aqui –ainda não queria morar ali para sempre. –Só tenho que saber que tipo de coisa a Sociedade do Sul precisa. O que falta, o que faria a vontade do clube da Primavera. Talvez esses vestidos floridos e sutiãs enormes sejam exageros. Mostre-me o que é diferente aqui. Nas leis, no dia a dia... O que você levaria para o Sul?

-Tudo –Hannah sorriu.

Ela decidiu me deixar dormir e me mostrar tudo no dia seguinte. Ela também estava cansada. Podia notar sua barriga de grávida prominente sob sua blusa colorida. Fiquei preocupada. O desconhecido podia punir ela. Ainda eram regras, não importa a onde ela estivesse. Deitei na cama que, aparentemente, ela dividia com Octavio, e finalmente consegui ter uma boa noite de sono. O sino ainda ecoava em meus pensamentos; ecoa até hoje. O som mais belo que já ouvi. Soa para que eu siga para um lugar seguro. É a confirmação que tenho de que fiz as escolhas certas. Perdoem-me, mas amo prefigurações.

A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now