820 dias antes de Hannah

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Tinha treze anos quando parti um coração pela primeira vez. Dois, para dizer a verdade. Foi quando comecei a me tornar um monstro. Eu não conseguia suportar, simplesmente não conseguia.

Nesses quase dois meses, muita coisa mudou. Antes, todos que me conheciam na escola sabiam que meu pai tinha uma padaria deliciosa, que eu era divertida e potencialmente rebelde e que tinha uma irmã fofa e outra extremamente inteligente. Depois de Hannah cair na boca do povo, eu era filha daqueles donos da padaria onde Hannah perdera a virgindade com "aquele menino do colégio perto do centro", ou a maluca assumidamente rebelde pronta para seguir os passos da irmã mais velha e virar a segunda desgraça da família, ou até mesmo a má influência para minha própria irmãzinha. Odeio admitir, mas o povo é extremamente criativo. Deviam ter escrito um livro e me deixado em paz.

Era um domingo de sol. Muito sol. E eu amava domingos e toda a confusão que ele causava em mim. Não sabia se ficava feliz por estar descansando ou desesperada por ter poucas horas para tal descanço. Meus pais estavam na cidade pegando mais produtos para nossa padaria e Verena estava com eles. Eramos apenas eu, o sol, e o domingo. Até tocarem a campainha. Ai sim eu me desesperei. Estava nos fundos da casa, entre o muro e o quartinho de estoque. Ninguém me via ali, então não estava vestindo nada. Absolutamente nada. Bronzeando-me por completo. O pecado perfeito. Esse era o tipo de loucura que eu fazia nos domingos que ficava sozinha. Por alguns minutos apenas, pois sempre sentia como se estivesse sendo observada. Se alguém me visse, seria expulsa da Sociedade do Sul e a desgraça de minha família dobraria. Eu me enrolei rapidamente numa toalha e corri para dentro de casa.

Para chegar ao meu quarto, teria que passar pela cozinha, dar a volta no balcão e subir as escadas. E a porta da frente era trasnparente. Ai decidi que aquele domingo era um domingo de desespero. Corri até a porta da cozinha e coloquei minha cabeça para ver quem era. Era Mario. No último mês, ele havia me ignorado várias vezes. Evitava-me na escola, no ônibus, de manhã. A Sociedade decidira me odiar e ter pena de Verena. Era só uma criança, não merecia sofrer pelos pecados de sua família. Mario era parte disso. Falava com Verena naturalmente. Eu não via motivo nenhum para ele estar ali aquela hora.

Saí da cozinha e andei escada a cima como se Mario não pudesse me ver através do vidro. Admito que meu coração acelerou-se naquele momento. Aquilo era crime, pecado. Não era para ninguém ver meus braços e pernas, a não ser eu mesma ou banhistas à beira do rio.

Mario empurrou a porta e descobriu que estava aberta. Eu corri para meu quarto e fechei a porta.

-Kat, espere –ele falou do andar de baixo.

Eu coloquei um vestido sem me peocupar com roupas de baixo. Meu coração palpitava loucamente, de medo, de insegurança. Coloquei o pano na abeça bem a tempo. Mario bateu na porta do meu quarto e eu a abri. Ele carregava um saco de confeitos coloridos e me encarou de forma estranha. Minha roupa estava amarrotada e torta.

-O que estava fazendo? –ele perguntou.

-Nada, o que faz aqui? –fui curta e grossa. 'Ele duvida de minha família, eu duvido de sua amizade' pensei.

-Esqueci de deixar esse saco de confeitos aqui hoje de manhã. É o resto da encomenda de seus pais. Onde eles estão?

-Na cidade. Pode deixar isso lá em baixo –começei a fechar a porta. Não pensei direito, apenas fiz. Ele me parou.

-Kat, me desculpe –ele disse. –Por tudo. Não é minha intenção, é que...

-Seus pais seguem e acreditam em tudo o que ouvem por ai, e se você desobedecer ou ser visto falando comigo tanto quanto antes acaba no seu quarto, de castigo -ele não disse nada. Eu ainda não tinha terminado. As pessoas me olhavam na rua como se eu fosse o erro de Hannah. Como se a culpa fosse minha. Talvez houvera uma votação: Quem devemos culpar já que Hanna traiu a tradição da Sociedade do Sul, fugindo por amor? Seus pais? Hm, não. Seus pães doces são uma delícia. Verena? Não. Apenas uma criança. A própria Hannah? Claro que não! Qual seria a graça? Ela nem está aqui! E que tal Katleia, a irmã idiota que ainda espera ouvir sobre um mundo de aventuras no fim do trilho do trem? Perfeito! –Conhece Hannah. Sabe muito bem que ela não fugiu por amor, nem por Octavio. Fugiu pela curiosidade. E eu não tenho nada a ver com a decisão dela Mario. Se quer pedir desculpas, trate-me normalmente, não como uma nova pessoa desconhecida.

-Talvez você seja desconhecida –ele disse, chocado. –A Kat de antes não diria isso. A Kat que conheço confia em mim.

-E o Mario que conheço não deixaria de andar comigo por um erro de minha irmã.

Então fechei a porta. Fiquei parada ali até meus pais chegarem. Mario demorou para descer as escadas. Ele queria meu perdão. Eu o rejeitei como ele me rejeitara. Tinha total conciência disso tudo e não senti nada. Nenhum remorso, nenhum medo de que meu momento perfeito estivesse comprometido. Algo dentro de mim estava crescendo, algo mal. A nova Kat, a Kat sem Hannah. O monstro. Ele foi evoluindo com o tempo, e chegou ao seu máximo quando fiquei cega. Cega, surda, burra, corrompida. Novamente, pulei para muito longe. Só lembrem-se do monstro. Ele tem um nome, vários, na verdade, mas contarei apenas no próximo capítulo.

Naquela noite, eu quis chorar, mas me segurei. Não gastaria lágrimas que não entendia. Hannah e Octavio brigavam muito raramente, e quando o faziam, voltavam logo a se entender e a serem perfeitos como sempre. Mario e eu nunca brigavamos. Era a confiança um no outro que mantinha a relação, qualquer que fosse. Entendem por que quebrei o coração dele, não entendem? Por que ele queria se explicar, se desculpar, e eu disse não. Eu era o futuro dele e ele era o meu. E eu simplesmente acabei com isso quando fechei a porta para ele. O segundo coração quebrado naquele dia foi o meu. Se eu destruia Mario, destruia a mim mesma. Ele não podia dar-se ao luxo de ter a sociedade pensando que ele era o próximo. "Se Hannah fez, Katleia fará". Ele era o próximo Octavio. Era tudo uma questão simultânea.

Ficar comigo: a próxima desgraça da Sociedade; comprovação de que eu seguiria os passo de Hannah. Saír de perto de mim: conservar a si mesmo e a mim também. Mas eu já não era mais a Kat. Eu era a Kat sem Hannah. O monstro. Tinha plena consciência do que estava acontecendo ali, mas ignorei todos os detalhes da complicada teoria. Deixei o monstro pensar por mim.

Ele desconfia de mim, eu desconfio dele. Eu desconfio dele, então desconfio de mim mesma.


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A Sociedade do SulWhere stories live. Discover now