Vitaminas, pensamentos e o Caderno dos Milagres

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Quando o fim de semana chegou, pensei que ficaria livre tempo o suficiente para fumar meus cigarros escondidos ou, quem sabe, acordar tarde. Aproveitar meu quarto bagunçado, meu walkman no volume máximo.

Mas acontece que Robert acordou inspirado hoje. Ele é padrinho de uma fundação que faz doações para pessoas que perderam casas e bens materiais em incêndios ou enchentes. Além de rico e cardiologista, Robert também é filantropo. E o que isso diz ao meu respeito? Meio que fui obrigado a manhã inteira a embalar camisas, calças, cachecóis e casacos que ele, Susan e Lucy não precisam mais. Há peças de roupa, pelo que posso constar, que sequer devem ter um ano de existência. É melhor doá-las a ser deixadas comidas pelas traças. 

Assim que tudo foi finalizado, selo as caixas de papelão com fita adesiva.

— Estas são as caixas que prometi com os agasalhos aos voluntários da Igreja, mas não tive tempo de encaixotar tudo, e não posso ficar para recepcionar a pessoa que virá buscá-las, pois Susan e eu viajaremos esta tarde para a casa da mãe dela, que se encontra muito doente. 

— E quando você volta?

— Ainda não sei, mas eu prometo ligar todos os dias. Estou tomando essa decisão em deixá-los sozinhos em casa com a consciência pesada. 

Ah, perfeito! Robert e Susan viajarão para Deus-sabe-onde e me deixarão aqui, servindo como babá de Lucy, uma menina que até o dado momento, não abriu a boca para falar uma palavra comigo sequer. Bom, de qualquer forma não faz mal. Não quero criar laços de amizade com essa pirralha que a única coisa que sabe fazer, é passar o dia inteiro estourando bola de chiclete e assistindo porcarias na TV. Lucy encontra-se sentada no chão da sala, sobre o tapete felpudo, assistindo Rainbow Brite, mergulhando a colher na tigela com cereal.

— Não quero ver a casa bagunçada e não quero saber de festas enquanto Susan e eu estivermos fora.

— Não conheço ninguém dessa cidade. Para quem eu daria uma festa? Para as moscas?

— Está prestando atenção, John? — volveu-se para mim  

— Por que não fala essas mesmas coisas para Lucy?

— Porque ela só tem doze anos e você é mais velho, praticamente o segundo homem da casa.

— Grande coisa.

— Escute, John — odeio quando quando ele fala meu nome dessa maneira —, eu sei o quanto você odeia estar aqui nesta casa, e conviver comigo, mas que tal parar de tentar ser o centro das atenções? O mundo não gira ao seu redor! Se colaborar comigo, poderá ir mais cedo para a Califórnia, e assim se verá livre de mim.

— Ah, será uma coisa maravilhosa — digo o mais falso possível.

Susan corre em seus saltos altos, arrumando a gravata de Robert, dando um beijo estalado na testa de Lucy, deixando uma imensa marca de batom. Arrasta a mala de rodinhas até o vão que leva a porta, apressando-o que ainda insiste em dar-me algum tipo de responsabilidade.

— Oh, temos que ir agora — olha para o relógio no pulso, enquanto Susan o puxa pelo casaco. — Lembre-se de ser cordial com o voluntário, e novamente, siga as regras que lhe disse. Nada de bagunça e nada de festas.

Despede-se de Lucy, esquecendo-se de mim.

Entediado diante do programa que Lucy assiste, subo as escadas a fim de tomar uma ducha quente. A água corre pelo meu corpo ensaboado. Fecho os olhos, passando os dedos sobre a cicatriz em meu ombro direito, e minha mente me força a lembrar-me do dia em que não só quebrei meu coração, como também, quase perdi a minha vida...

Nós, em uma casca de noz!Where stories live. Discover now