O que ainda restou de mim

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PARTE II

MARY


Quero gritar para alguém e dizer o quanto meu braço está doendo. Mas preciso ser forte. Toco a minha testa e percebo que está enfaixada. Semicerro meus olhos, forçando minha vista turva a desvendar quem é a pessoa que dorme apoiada sobre os cotovelos, cochilando na desconfortável cadeira de plástico. Os cabelos loiros, com algumas mechas castanhas, totalmente eriçados. A tez dele está pálida, a calça jeans desbotada, e a camisa branca possui homéricas manchas de tinta. Ele não pode me ouvir pois sua audição está preenchida pelos fones de ouvido de seu walkman. Engulo em seco quando meu cérebro enfim consegue juntar o desconexo quebra-cabeça. John Walker, vulgo Jaw, está dormindo aqui! E onde é exatamente "aqui"? Posso considerar como um quarto de hospital.

Quartos de hospitais são ambientes familiares para mim.

Movo um pouco meu pescoço e observo a bolsa de soro quase vazia ligada a mim. Franzo meu cenho. Mordo meu lábio inferior com força, exigindo que a minha mente foque em outra coisa que não seja a agulha do cateter perfurando a minha veia, ou John Walker dormindo a uma certa distância do meu leito. Uma enfermeira adentra o quarto, e abre um sorriso caloroso para mim. Ela parece ter a mesma idade da minha tia. Ela foi muito gentil comigo, enquanto trocava a bolsa de soro por outra.

— Ele está aqui desde que você chegou. — diz a enfermeira para mim. — É seu irmão, docinho?

— Não.  

— Seu primo?  

 — E-ele não é nada para mim — gostaria de parar de gaguejar.

— Logo vai ficar tudo bem, querida. Já contactamos os seus responsáveis.

— Minha tia está aqui?

— Sim, sua tia está aqui. Só está assinando uma papelada na recepção.

Ah, que alívio. O quarto é um pouco quente, devido ao aquecedor e tem cheiro de desinfetante de lavanda. 

Acabei por entrar novamente em uma maratona de exames e agulhadas. Meu braço direito, endurecido sobre meu abdômen, está com cateteres e acessos enquanto o equipo drena a bolsa de soro pendurada no suporte de inox. Desde que a enfermeira saiu deste quarto, conferi exatamente quantas gotas já passaram pelo dosador. Tento distrair-me para não contemplar o garoto adormecido na cadeira. Admito que, mesmo adormecido, John é bastante belo. Um belo adormecido. Mas se não fosse por ele, talvez, eu ainda estivesse estirada no chão da cozinha com minha cabeça afogada em cima do meu próprio sangue...

Entristeço-me comigo mesma. 

Espero ficar logo recuperada e retornar para a minha casa de uma vez por todas, e dizer "adeus" às agulhas. Mexo um pouco minha cabeça para a esquerda e noto o calendário com fotos de gatinhos na parede do quarto. Bonito calendário, penso comigo mesma. Logo recordo-me do Magrelo, digo, Panquecas, o agora gato da Lara. Tia Ellie e tio Carl nunca me deixaram ter um gato de estimação. Minha tia é extremamente alérgica. Gatos, cães, coelhos... Nenhum destes animais posso ter de estimação, por causa da alergia da tia Ellie. Quem sabe, em um futuro distante, eu não possa ter um peixinho dourado? Mas eu ficaria triste do mesmo jeito ao ver o bichinho preso para sempre em um aquário de vidro.

Suspiro profundamente.

 Eu nasci prematura, pesando apenas um quilo e quinhentas gramas. Passei metade do tempo dentro de uma incubadora em uma tentativa desesperada para que eu sobrevivesse. Um dia, minha tia disse que as enfermeiras falavam que eu era uma coisa cor-de-rosa e muito mole. Muitos médicos disseram que eu não chegaria aos meus dois anos de idade. Por um milagre, estou com dezoito anos.

Nós, em uma casca de noz!Where stories live. Discover now