I n t r o

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"Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo". — II Pedro 2:4 

      DA JANELA ERA POSSÍVEL VISLUMBRAR um carro preto deixar a entrada do prédio. É irônico pensar nas coisas que lembramos quando tudo acaba. Havia algo dentro da minha cabeça que sempre me fazia voltar para aqueles dias. Me faziam visualizar com clareza as imagens bíblicas esculpidas nos retalhos coloridos das janelas, e então eu podia ouvir sem ruídos o padre Paul suplicar para que Deus encaminhasse cada uma daquelas crianças para um bom lar. Mas Deus ignorou a súplica do padre quando encaminhou Bridgit para me tirar daquele orfanato.

       O orfanato St. Anthony tinha pelo menos o quádruplo da minha idade, ficava no interior de Dallas, no Texas, num lugar tão remoto e afastado que uma vez cheguei a imaginar que estava vivenciando uma conspiração. E eu cheguei lá cedo o suficiente para ser o único lugar da infância que conseguia me lembrar. Nunca souberam os antecedentes dos meus pais, sempre diziam que eu fui abandonada numa determinada noite.

      Nunca foi a explicação mais convincente, entretanto, era a que eu costumava aceitar enquanto permanecia vendo as crianças indo e vindo enquanto eu estava estacionada. Inegavemente, eu não era o sinônimo mais fiel de uma criança normal. Todos os anos amanhecia com símbolos na cabeceira da cama, vozes costumavam invadir minha mente, repudiava qualquer regra e afastava qualquer pessoa.

       Na 23ª manhã calorosa de julho, a notícia deveria ter sido animadora. "Katherine, preciso que conheça uma pessoa." E Bridgit O'Brien adentrou o quarto com um olhar que escondia qualquer evidência de quem ela era. Quem ela realmente era.

— Katherine. — apresentou um sorriso pequeno e satisfatório — Eu esperei tanto por esse dia. — seus olhos marejaram — Finalmente te encontrei, querida. Você tem os olhos da sua mãe.

       Eu não era atrevida o suficiente para poder me pronunciar. Bridgit era minha tia por parte de mãe, e aparentemente a única pessoa que restava da minha família. Havia algo implícito em suas frases, e em como ela conseguiu me encontrar, ou como conseguiu me tirar de lá em minutos. Eu não sabia exatamente como funcionavam os processos de adoção, mas sabia que não levavam minutos. Naquele momento não tinha tanta importância. Eu finalmente teria um lar e, mais do que desconfiada, eu estava feliz.

— O que quer comer? — Bridgit perguntou sorrindo, sem desviar o olhar da direção.

— Não estou com fome. — menti com certa timidez.

— Vou parar naquela lanchonete ali. — ela espiou pela estrada — Pode pedir o que quiser, a viagem será longa.

       Era a primeira vez que eu estava dentro de um carro, e talvez tenha sido quando nasceu minha paixão por eles. O Maverick azul de Bridgit já nem era mais fabricado na época, e seria nossa melhor companhia até o Colorado.

       Sentei-me rente ao balcão e comecei a escolher uma série de lanches de nomes peculiares, Bridgit pagou todos.

— Bem, agora precisamos conversar. — seu tom ainda não era amigável o suficiente para parecer animador.

       Minha pouca altura pelos 14 anos deixava escapar na expressão a verdadeira sensação que aquela mulher ruiva me passava: medo.

— Eu sei o que isso vai parecer, mas preciso que me ouça. Já ouviu a história de Lúcifer? O anjo que caiu? — afirmei com a cabeça, tentando internamente entender aonde ela queria chegar — Seu pai era como Lúcifer. Um anjo. — estreitei as sobrancelhas e quase liberei uma gargalhada.

       A velha história do anjo que cai e se relaciona com uma humana parecia mais com o roteiro de um filme, e Bridgit se precaveu quanto a isso. Havia pelo menos dez livros restritos com histórias que se encaixavam perfeitamente com tudo que eu era; os sonhos, as vozes, os símbolos. Um deles chamava mais a atenção por possuir o trecho de uma profecia.

"Os tiranos, filhos de Deus com filhos do homem, também estão condenados. Senão à Espada do Arcanjo, ao abismo das trevas. Duas décadas até seu último suspiro."

      Eu morreria aos 20 anos, e recusei aquilo dentro de mim mesma por muito tempo. Era ridículo. Mesmo que todos os fatos se encaixassem perfeitamente nos versos da profecia, eu não poderia simplesmente acreditar num livro boba.

      Deus ignorou a súplica do padre quando encaminhou Bridgit para me tirar daquele orfanato. E ignorou minhas súplicas quando pedi por uma vida comum. Da janela do apartamento os carros pretos ainda me lembravam o mais perto que consegui chegar de uma vida comum. Com nome e sobrenome de Samuel Campbell, ou como todos o chamavam, Sam Winchester.

If I Had Wings (Hiato)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora