Por Labirintos de Sal

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Autora: Luana Simão


Ela abriu os olhos devagar. Espreguiçou-se antes de levantar. Caminhou até o banheiro e começou seu ritual.

Ela nunca fazia nada diferente. Era monótona. Escovou os dentes, lavou o rosto, penteou os cabelos. Olhou-se no espelho. Não era velha. Aliás, para sua geração podia até ser considerada jovem, mas sua vida era chata.

Escritório, casa, filhos, trabalho que não deu tempo de fazer no escritório... Sua vida restringia-se a isso. Não sabia explicar por que naquele dia não teve vontade ir ao escritório.

A casa estava vazia. Seus filhos crescidos, o marido já havia saído e só chegaria a noite quando os dois estariam cansados demais para conversar ou fazer qualquer outra coisa.

Olhou-se no espelho e se analisou. Coisa que não fazia há algum tempo. Alguns fios brancos se destacavam em meio o cabelo abundante. Nada que uma tintura não resolvesse. Compraria a tinta à tarde.

Avaliou o rosto com mais cuidado. As bochechas estavam flácidas, o nariz parecia maior, os lábios finos, as linhas de expressões mais fundas. Reparou em detalhes que antes nunca tinha percebido. Sempre achou os olhos bonitos. Grandes olhos cor de mel. Mas pequenas rugas começavam a brotar em suas laterais, o que lhes dava um ar cansado. Isso seria mais difícil de esconder do que o cabelo branco.

Sentiu-se velha.

Concentrou-se nos olhos. Reparando bem ela percebeu que não eram apenas olhos. Ela podia ver dentro deles ruas, vielas, estradas já gastas pelo tempo e uso, caminhos desconhecidos. Viu túneis, cavernas escuras, lagos profundos e mais caminhos dos quais não podia ver o fim. Ficou com tanto medo de se perder naquele labirinto desconhecido que eram seus próprios olhos que os fechou.

Agora só viam escuridão. Virou-os e assim, com os olhos ao contrário, virados para dentro de si mesma, começou a caminhar.

Desviou de nervos e ligamentos. Pulou veias nas quais pulsava sua vida, escorrendo por todo o corpo. Viu neurônios e axônios e admirou uma sinapse percorrer sua massa cinzenta.

Espremeu-se entre músculos até alcançar um corredor estreito. Caminhou por ele sem saber aonde ele a levaria.

Parou diante de uma porta.

Abriu-a e entrou. Era seu escritório. As paredes estavam cheias de anotações, como se fossem folhas de uma agenda. Compromissos do dia, horários, endereços. Alguns papéis estavam em baixo da mesa, quando os pegou viu que eram coisas que deveriam ter sido feitas, mas se esqueceu, agora via por que. 'Comprar tinta para o cabelo', era a anotação mais recente naquele turbilhão de compromissos. No fundo do escritório tinha outra porta.

O próximo cômodo parecia a sala de uma casa. Nela estavam seus filhos e o marido. Olharam para ela, mas sem prestar muita atenção. Cada um continuou o que estava fazendo. E ela seguiu andando.

Passou por uma capela com as portas abertas. Pensou em entrar e rezar um pouco, não lembrava-se mais da última vez que havia estado em uma igreja, mas acabou passando direto. Talvez voltasse depois.

Encontrou uma construção que parecia a faculdade onde estudara. Lembranças das quais achava que tinha se esquecido estavam lá, algumas presas em teias de aranha, afogadas em pó. Outras ainda bem vivas.

Passou por vários cômodos e salas que não entrou. Escolhia uma ou outra porta ao acaso e nunca se demorava muito.

Na próxima entrada viu-se em um grande cômodo cheio de caixas. Algumas grandes, cheias de poeira. Outras tão pequenas que cabiam na palma de sua mão. Ela abriu uma delas e uma criança vestida de bailarina pulou para fora. Mas a criança parecia velha, apesar dos trejeitos infantis. Abriu outra caixa. Uma casa de boneca, branca com janelas azuis estava dentro dela. Tirou um pouco da poeira do telhado reconhecendo-a como a casa dos seus sonhos.

Olhou ao seu redor. Aquela era a sala onde guardava seus sonhos nunca realizados. Estavam velhos, cansados de ficarem guardados. Alguns já estavam mortos. Como seu sonho de conhecer Paris. Ela caminhou pela sala cada vez mais triste. Tinha alguns sonhos de criança, como o de ser bailarina que ela já tinha superado e achava até engraçado. Mas outros... Doía vê-los morrendo em caixas, abandonados. Como seu sonho de escrever um livro, cheio de cabelos brancos e rugas.

Olhando ali todos seus sonhos, lembrando de tanta coisa bateu-lhe uma solidão, uma saudade daquilo que não viveu e chorou. Sentiu as lágrimas rolarem de seus olhos, mas não as impediu nem se preocupou em enxugar o rosto. Foi então que viu uma pequena portinhola no chão. Tentou abrir, mas estava emperrada. Forçou-a até quebrar a fechadura. Não tinha iluminação alguma. No primeiro momento pensou estar vazia, até começar ouvir alguns sussurros. Teve de aguçar os ouvidos para poder escutar. Eram seus desejos. Seus segredos mais sombrios, que não contava a ninguém. Levantou batendo a porta e saiu dali. Sem perceber a fechadura se refez. Havia sonhos e lembranças que ela escondia até de si mesma.

Saiu dali e entrou em uma trilha no fim da qual estava sua casa. Não sua casa de agora, mas a casa onde nascera. No quintal viu o grande salgueiro. Essa imagem era clara e límpida, talvez porque sempre lembrava-se dela. Sentiu-se encher-se de lágrimas novamente.

O salgueiro abria-se e ela entrou para ver o que encontrava. Era uma salinha empoeirada, cheia de lembranças das quais ela havia tentado se esquecer. Todas amontoadas. Penduras pelas paredes. Começou a mexer com elas. Algumas imagens ela demorava a reconhecer, outras estavam quebradas. Achou que não valia a pena concertá-las. Deixou aquelas lembranças e concentrou-se em sua casa.

Foi até lá e entrou. Tudo estava do jeito que se lembrava, tinha se esquecido que viajava pela sua própria lembrança. Os cheiros, os sons. Tudo era igual. Sentiu paz.

Subiu as escadas e foi até seu quarto. Era o mesmo, mas estava vazio e escuro. Sobre sua cama estava um caixão aberto. Ela foi passo a passo até ele, com medo do que teria lá. Olhou dentro do caixão e prendeu a respiração.

Viu a si mesma dentro do caixão. Estaria vendo o futuro? Ou tinha morrido e não havia percebido?

Afastou-se depressa. Desceu as escadas correndo.

Tinha que voltar!

Quando chegou ao quintal viu que o chão estava molhado, mas não estava chovendo. Correu por onde tinha vindo, eram tantas portas e tantas salas que ela não tinha mais certeza do caminho. Chorava. Estava perdida, não sabia voltar. Estava presa dentro dela mesma.

Passou pela capela, agora não daria tempo de rezar. A água cada vez mais alta. Parou quando viu a bailarina. Ela estava se afogando. Ajudou a criança velha a chegar num ponto mais alto. A água agora chegava à sua cintura e parecia estar descendo pelo caminho de onde ela tinha vindo.

Uma enxurrada desceu e a derrubou. Ela recuperou o equilíbrio com os olhos ardendo. O coração disparado. A água era salgada. Lágrimas, ela de repente percebeu. Olhou as lágrimas que desciam.

Seus olhos estavam fechados! Ela os tinha deixado fechados, não os abrira em nenhum momento! Estava trancada. Não daria para voltar por ali. O desespero era tamanho que não conseguia parar de chorar e, quanto mais chorava mais a correnteza aumentava.

Nadou, correu, foi jogada contra as paredes pela enxurrada, até chegar novamente ao quintal de sua casa. Entrou e fechou a porta, mas a água entrava pelas janelas e inundava tudo. Lá fora as imagens dos santos de sua infância saiam da capela e boiavam ao lado dos seus sonhos encaixotados.

Ela subiu as escadas olhando para a porta prestes a rebentar. Andou de costas e sem perceber estava de volta ao seu quarto. Respirava com dificuldade. Suas mãos tocaram o frio objeto contra suas costas. Ela sabia o que era.

Lá embaixo a porta estourou estilhaçando-se com grande barulho.

O tapete perto da porta começou a ficar mais escuro nos lugares onde absorvia a água que vinha de fora.

Ela se virou devagar criando coragem para o que viria.

Prendeu a respiração.

O caixão estava vazio.

Antologia: Clube de Autores de FantasiaWhere stories live. Discover now