A história do meu novo e tedioso emprego

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Autor: Pedro Augusto Alves Pereira



ATO I


O maldito despertador apita feito louco.

- Que inferno... - resmungo em voz alta.

Apalpo o criado, faço questão de ainda manter os olhos fechados. Pronto. Levo a tela até meus olhos, que agora abro vagarosamente. Mais dez minutos. Jogo o celular novamente em cima do criado com todo o desleixo inerente a um sonolento como eu. Viro para o lado contrário, inconscientemente deixando as costas para o maldito despertador.

Passam-se dois minutos e meus olhos estão abertos, fixados na parede cinza do meu quarto. Lá se foi o sono. Lá se foram os dez minutos a mais para adiar a minha existência nesse inferno.

Me levanto em um pulo, coço meu peito e respiro fundo o ar úmido que vem da rua. A gente se acostuma com o cheiro da podridão e da poluição destruidora dos gases dos confins da terra. Vou até a janela pedindo ajuda à luz alaranjada das nuvens e...

Antes de continuar. Espero que o leitor tenha entendido que estou realmente no inferno. Sério! Inferno mesmo gente. Oh! Não é brincadeira. Talvez por eu precisar utilizar o despertador para acordar, ou por ter celular, ou por parecer um começo de narrativa de uma rotina parecida com as suas, tenham sido levados a conclusão de que chamei de "inferno" a terra onde vocês vivem. Da mesma forma espero que o autor dessa narrativa não estrague essa surpresa incomodativa colocando no título alguma referência a demônio ou coisas do tipo.

Enfim, ali do lado de fora da minha janela vemos como as coisas são parecidas com o mundo dos vivos. Olhem. Há carros, ainda com ferrugens latentes e uma aura esfumaçada em torno deles. Há pessoas normais... Não tão normais. Algumas têm chifres, outros caldas, alguns possuem asas, mas de forma geral é quase a mesma coisa que a nossa querida terra. Na verdade eu não faço idéia se o inferno é ou não na terra, aviso de antemão àqueles que anseiam por sentido após o fim da vida terrena, esse tipo de informação não nos é passada.

Eu não li Dante Alighieri, talvez o autor sim, mas eu como protagonista deste conto infernal (gostaram?) não faço idéia de como o Inferno é regido em todas suas camadas administrativas, ou Círculos.

Como estou morto não preciso comer. Visto meu terno, sem gravata, não gosto de gravatas. Aperto o cadarço dos meus sapatos, pego minha pasta, e sim meus amigos, hora de trabalhar.

Tranco a porta do meu apartamento, uma chave vermelha viva codificada para mim. Ao menos o restinho de propriedade privada é necessário. Eu também me assustei que o Inferno também precisa de uma mínima organização.

O elevador sobe os cinco andares do meu prédio rugindo como uma fera, soltando faíscas e entrelaçando suas correntes. Me espantei da primeira vez, quase um trem monstruoso. A porta se abre.

- Bom dia Julio! - sorri a comandante da pequena nave maligna.

- Bom dia Dolores. - retribuo o sorriso.

Fico em silêncio para não dar inicio a conversas intermináveis de como o marido adultero de Dolores a traiu tantas vezes que ela não resistiu e capou o coitado. Ainda está vivo. Ela morreu em um acidente de trânsito, totalmente ocasional, ou não. A coitada estava na primeira cadeira do ônibus, antes mesmo da roleta, segundo ela, discutia fervorosamente com o motorista por não ter parado em seu ponto. O motorista também fervorosamente, assim como nossa estimada diaba, descontou a sua ira no pedal do acelerador. Ela o agrediu com sua bolsa, instintivamente o motorista aperta o freio e... Dá-lhe a senhora voado pela janela do coletivo. Rachou a testa no asfalto. É possível ver a ferida meio aberta na sua cabeça. Com exceção do seu humor, da sua fala sem freio, acho que deveria ser uma boa moça.

Antologia: Clube de Autores de FantasiaWhere stories live. Discover now