O Réquiem de Lissandra

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Autor: Paulo Yasu



Seus dedos são lindos. Gélidos, quebradiços, mas lindos. E ela está tão viva quanto o imperador. A neve castiga meus olhos e tenta me abater, mas como seguidor dos deuses de nossas boas terras, eu perduro. Lissandra nunca deveria ter cedido às cruzes. Foi cegada pela certeza de caminhar para o mar de fogo que espera os hereges. A dama de gelo era uma herege, assim como sou. Mas, diferente de mim, acreditou que seria punida em sua morte e recebeu sua sentença.

- Einar é seu nome, então? - Olaf, o Bastardo, dirige sua voz a mim.

- Sim, meu lorde. - O chamo de lorde pois é o que irá me garantir a vida. - Sou filho de Einar, ferreiro de minha vila. Sou das terras de Fridjir, uma das boas terras de nossas terras.

- Como tomou conhecimento de que nós estaríamos aqui?

- Meu conhecimento só abrangia minha amada Lissandra.

- Calúnia. - Ele se vira para Sir Locke, o famoso Sir Locke. - Fique a vontade.

Eu não me sinto confortável sendo sentenciado, não acredito haver alguém que se sinta. Eu não posso morrer aqui, não tão perto da lâmina que me foi dada.

- Exijo um julgamento por duelo! - Eu grito.

Eles me olham como se não entendessem, e começam a rir, como se eu fosse um bobo da corte.

- Onde ouviu sobre isso? De algum bardo bêbado demais para evitar mentiras óbvias? - Olaf me diz, ainda limpando as lágrimas alegres que despertei.

Ouvi isso de um bardo e, diga-se de passagem, bêbado. O Bastardo continua.

- Sir Locke, o que me diz de deixarmos Einar, o Ingênuo, se explicar?

Ele remove seu capacete e comprova as histórias, um escalpo havia o roubado grande parte dos cabelos, o deixara com um daqueles penteados dos monges cristãos. Com um enorme sorriso sujo ele concorda acenando a cabeça.

- Pois bem, me dê um motivo para que fique vivo. - Sua mão repousa sobre o pomo no cabo de sua espada.

- Meu lorde, eu vim prestar minhas preces, para os deuses de nossas boas terras.

- Sabe, Einar, seu olhar de merda não me engana. - Seus olhos brilham rubros e vazios. Como os de um mercenário, o tipo de gente que ele é. - Porém, estamos na estrada, somos tão honestos quantos os padres das outras terras. Me diga o que procura aqui.

A base da montanha é fria, não tanto quanto seu topo, não tanto quanto o corpo de Lissandra, mas é fria. E a neve aqui é frágil, servindo de sustentação para o branco que sobe. O metal das armaduras rouba o calor dos corpos, junto da mobilidade. Minhas camadas de couro deixam que as energias se contenham em mim. Não quero morrer, com toda a certeza. Resolvo dizer a verdade.

- Venho em busca da espada que me foi prometida.

Mais gargalhadas. Uma pausa. Um assovio. Outros cinco deles saem de trás de uma pedra. Os Desgraçados, como gostam de chama-los.

- Pegue a droga da sua espada, Einar. Mas se tocar no ouro, nós teremos problemas. - Ele sorri. Foi justo, como um imperador deve ser, como um imperador jamais será.

Ando lentamente, empurro o corpo quebradiço para o lado, tentando não quebra-lo, quebrando-o. Sinto certo remorso pelo que vivemos, mas a efemeridade humana me mantém sério. Ouço mais risadas. Por de trás de seu corpo dividido há uma porta. Algo a manteve fechada por dentro, e Lissandra não pode escapar de seu destino, caçada como uma bruxa pelos fanáticos cavaleiros da cruz vermelha. Ela buscou ajuda para se redimir das preces para Kvanir, as fornicações que nos trouxeram felicidades e um filho morto no útero congelado. Os padres encaram a salvação como algo alcançável apenas através da próxima vida, após uma temporada no que chamam de purgatório. Buscar ajuda das pessoas das outras terras é um erro recompensado com privações e morte. Que tipo de deus não vence batalhas? Que tipo de deus conquista com amor?

De qualquer forma, a porta está trancada, me afasto com movimentos leves, como se aqueles homens fossem lobos prontos para atacarem, e chuto a madeira. Entro na pequena caverna. Um homem está morto ao lado de sua fogueira apagada. Uma morte a moda dos povos do sul, onde a fumaça faz o trabalho da lâmina. Sinto raiva de não poder vingar Lissandra, que foi impedida de entrar por um homem covarde. Mas, em todo caso, o que um simples velho poderia fazer contra as espadas? Ainda que ele fosse pai de Lissandra, não o culpo. O medo da morte e o fanatismo implantado pela cruz de prata, ainda envolta em seu pescoço morto, são suficientes para que o destino fosse traçado dessa maneira.

Caminho até o fundo escuro, agarro o cabo frio e levanto a espada. Dizem que ela foi feita para uma morte indireta e eficiente. Dizem que seu grito leva homens ao desespero e os mata antes que possam fugir. Não vejo nada de especial nela, além de duas finas barras de ferro em um vão na lâmina, fazendo com que a espada pareça frágil demais para uma batalha. Me sento na velha poltrona onde saudamos Kvanir incontáveis vezes.

s homens de Olaf entram, pegam tudo que pode ter algum valor, me mandam ficar aqui dentro até o dia seguinte e então, vão em boa hora.

***

- Acorde! - Uma voz me desperta.

Vejo um homem me olhando de cima, trajando vestes de couro e um pano branco com uma cruz vermelha desenhada. Um batedor templário.

- Essa casa é de Órin! Saia daqui!

Me coloco sobre os pés antes que ele pudesse desembainhar sua espada. Com um bom chute o coloco para fora. Um batedor sempre está sozinho. Saio da caverna com minha nova espada em mãos. Ele também está em posição de batalha.

- Pagão, aceite a palavra e pouparemos sua vida. - Ele me diz. Sua voz é fina, assim como seus músculos. Resolvo que o embate pende a favor dos que lutam por deuses guerreiros e não pelos que lutam por deuses pregados.

- Uma oferenda a Órin. - Sorrio. - Uma boa oferenda ao meu deus pagão!

- In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti. - Ele grita fazendo alguma espécie de gesto sobre o rosto.

Resolvo que as ações falam mais alto, começo a caminhar um semicírculo e ele faz o mesmo. Após alguns passos, mudando meu ângulo de visão, percebo o quão fodido estou. Pelo menos irei morrer em batalha, como os filhos de nossas boas terras devem. São vinte, talvez vinte e cinco deles, com armaduras, clavas, espadas e machados. Estão a cem passos de nós, correndo para protegerem o homem a minha frente. Corro em direção do batedor, pretendo matar pelo menos esse antes de morrer.

Nossas lâminas se encontram no ar. Sinto uma vibração tremenda nas mãos e elas adormecem. Um som agudo e contínuo ressoa ao pé da montanha. Meus ouvidos doem e abaixo a cabeça, instintivamente, assim como meu oponente.

- Jube, domne, benedícere. - Ele exclama, ao olhar para o que está atrás de mim.

Me viro e percebo o que significam os boatos sobre fazer homens correrem em desespero e os matarem antes que possam fugir. Uma avalanche desce a montanha. Os templários correm para longe e eu entro de volta na caverna. Órin, meu bom deus, me protege pois luto em seu nome. As vidas de meus inimigos fortalecem nossas boas terras.

Sei que vou morrer aqui, ao lado do corpo do pai de minha finada esposa, ao lado de meu prêmio. A tão aclamada espada sem algum nome que eu conheça. Mas como toda boa arma, ela merece um.

- Irá se chamar O Réquiem de Lissandra. - Digo em voz alta.

Acendo a fogueira, me deito na poltrona e espero o meu fim.

Antologia: Clube de Autores de FantasiaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora