Capítulo 65

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Alguns sentimentos não mudam, independente do tempo que passe.

Olhando para a fronteira entre a Corte Primaveril e a Corte Outonal, Lucien sentia aquele familiar arrepio na nuca, os dedos dormentes e a mandíbula tão apertada ao ponto de fazer doer os ossos de seu rosto, tamanha era a gama de sensações que estar voltando àquela Corte trazia à tona. Mas ele não tinha escolha; era um macho responsável e deveria arcar com seus deveres de emissário. Não era a primeira que fazia isso, lembrou a si mesmo, tentando tomar coragem. No entanto, era a primeira vez que tinha alguém para quem voltar - isto é, se o beijo que Elain lhe dera antes que partisse fosse algum indicativo do que poderia acontecer quando retornasse. Que o Caldeirão fosse benevolente e não o fizesse criar falsas esperanças novamente.

Trocando o peso do corpo de um pé para outro, o macho ruivo olhou a posição do Sol. Já estava a pino, era o meio do dia, a hora em que combinara com os emissários Outonais de encontrarem-se na fronteira. Lucien não era burro para entrar naquela Corte sem um acompanhante oficial - não depois do que houve quando fugia com Feyre, pelo menos. Quando retornou o olhar para a densa vegetação que cobria boa parte do território abaixo da colina verdejante em que ele se encontrava, finalmente avistou Levien e Viktor deixando as sombras das árvores. A posição elevada de Lucien lhe permitia rastrear o entorno, em busca de qualquer possível armadilha que os outonais possam ter preparado e, não tendo localizado nenhuma - ainda - desceu até o sopé da colina, comprimentando os conterrâneos com um leve aceno de cabeça.

A grama verde da Corte Primaveril foi gradualmente passando para um tom mais amarronzado conforme Lucien seguia até os machos; os passos até então suaves foram substituídos pelo som de folhas secas se quebrando sob seus pés.

- Milorde... - Levien fez um aceno com a cabeça, os cabelos encaracolados caindo um pouco sobre a testa. Não passou despercebido à Lucien o veneno sendo destilado em uma única palavra. - Nosso Senhor está ávido para encontrá-lo.

- Não percamos tempo, então. Quanto antes terminarmos, mais cedo volto para casa. - Fez questão de enfatizar a palavra casa, deixando bem claro qual era sua posição ali, se a túnica verde e dourada que vestia não fosse indicativo o suficiente.

Claramente irritado por ter que servir de escolta, Levien esticou um dos braços para Lucien e outro para Viktor - cujos olhos cor de âmbar brilhavam com algo que Lucien não conseguiu identificar de imediato. O macho resignou-se e segurou o braço do cortesão à sua frente. Atravessariam direto para dentro do Castelo Outonal, então. Ótimo. Quanto menos tempo passasse naquela Corte infernal, melhor.

O cheiro ocre encheu suas narinas conforme a fumaça da magia de Levien se erguia ao redor deles. Um rodopio em sua mente e, tão rápido quanto um piscar de olhos, estavam em um corredor tão escuro e úmido quanto qualquer cela de prisão. A entrada de funcionários, lembrou-se. Costumava sair por ali quando se esgueirava para fora do Castelo Subterrâneo para agraciar-se com o calor do Sol.

Com Levien seguindo caminho à sua frente, e um Viktor muito calado à suas costas, Lucien percorreu o extenso corredor, que ficava cada vez mais mal iluminado conforme desciam aos confins da terra. Tochas de fogo outonal brilhavam aqui e ali, mais ou menos a cada 100 metros, garantindo que os criados do castelo não ficassem na mais completa escuridão. Conforme caminhavam, pequenas memórias o atingiam. Correr por aqueles corredores escuros e estreitos, dando sustos nas criadas e caindo na gargalhada quando os gritos agudos ecoavam no teto baixo; sair de fininho pelas portas de serviço, que desembocaram em todas as partes imagináveis, incluindo para fora dos muros do castelo; percorrer a corte, conhecer os aldeões, ajudar nas lavouras... Amargura o tomou quando subitamente se deu conta que, de todas as poucas memórias felizes que tinha daquela corte, sua família não participava de nenhuma delas. Com exceção de sua mãe, a Senhora Outonal, cujo colo e carinho sempre o embalavam após uma das inúmeras surras que Beron mandava que lhe dessem por ser impertinente demais. Tinha seis anos quando foi açoitado pela primeira vez. Não é algo que se esqueça...

Corte de Flores FlamejantesWhere stories live. Discover now