Capítulo 39

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Enquanto isso,
na Corte Diurna...

Helion bebericou um pouco de seu vinho enquanto relia os manuscritos à sua frente. Os poucos registros que Kadmè conseguiu reunir não continham informações realmente úteis sobre Oráculos.

Houve um tempo - antes de Amarantha, para ser mais exato - em que as bibliotecas de sua Corte abrigavam todo tipo de conhecimento que se pudesse imaginar. Amplas e vastas bibliotecas continham manuscritos que datavam de eras atrás, alguns antes mesmo de os feéricos caminharem por sobre a terra. Agora... Seu coração apertava sempre que lembrava a quantidade de conhecimento jogada na fogueira por aquela vagabunda de Hybern.

O macho duvidava muito que os documentos sobre sua mesa pudessem ajudar Lucien a desvendar o mistério dos poderes de sua parceira. A Archeron do meio possuía um tipo único de magia permeando suas veias; o mesmo tipo que a mais velha das irmãs certa vez possuíra e que atraíra Helion quase tanto quanto a beleza da fêmea. Tal beleza, ele tinha de admitir, não chegava aos pés da beleza puramente estonteante de Elain mas, apesar do que qualquer feérico possa afirmar por aí, Hélion possuía sim limites. E a parceira de Lucien era um limite intransponível.

A luz do meio dia infiltrou-se pelas paredes vazadas do Palácio Interdiu¹, nos calmos prados diunais. Hélion recostou-se em sua cadeira, absorvendo o calor do Sol em sua pele, levando a taça de vinho novamente aos lábios. Possuía um motivo oculto por tanto interesse nessa pesquisa em específico; seu ego seria imensamente agraciado ao dar à Lucien as respostas que ele procurava e, com isso, ressaltar ainda mais a magnificência da Corte Diurna para ele. Hélion sabia que não podia revelar absolutamente nada sobre a verdadeira ligação entre os dois machos, mas isso não o impedia de desejar imensamente fazer parte da vida de Lucien. Aquele era, talvez, o único arrependimento de toda a sua existência.

Uma vibração no escudo protetor que Hélion erguera em volta de sua sala de estudos revelou a presença de Kadmè. Hélion ajeitou a postura, pousando a taça dourada na mesa igualmente dourada, lambendo o lábio superior para capturar qualquer gotícula de líquido que pudesse manchar sua aparência. A fêmea bibliotecária passou sob imenso arco adornado da sala no exato instante em que Hélion terminou de se aprumar; ela carregava uma pequena caixa antiga nas mãos morenas e delicadas, e a respiração de Helion ficou um tanto irregular ao constatar do que se tratava.

- Você o encontrou! - Levantando-se, encontrou Kadmè a meio caminho até sua mesa.

- Não exatamente. - Ela fez um beicinho encantador. - A caixa deve tê-lo protegido do fogo, mas a fechadura está totalmente derretida, sem contar as inúmeras proteções que o envolvem. Não consegui abri-la.

- Fique tranquila, meu bem. - Hélion segurou o queixo da fêmea para que olhasse em seus olhos. - Você foi maravilhosa.

Inclinando-se, roçou levemente os lábios nos de Kadmè, agradecendo-a por todo o trabalho que teve todos esses dias na busca por documentos que relatassem qualquer coisa sobre oráculos e visões e premonições. Ao afastar-se, pegou a caixa - que era pouca coisa maior que uma caixinha de joias - e caminhou até sua cadeira novamente. Sem uma palavra sequer, Kadmè o deixou sozinho. A fêmea de longos cabelos escuros era sua bibliotecária de maior confiança, e sabia que aquele momento era de extrema importância para Hélion.

O macho afastou cuidadosamente os demais manuscritos que leu e releu por dias a fio, pousando a pequena caixa sobre a madeira maciça folheada a ouro e tomou um tempo para apreciá-la. Aquele objeto continha a última esperança de resposta para Hélion - e consequentemente para Lucien, já que nenhum outro lugar abrigaria tais informações. Ele podia sentir a magia gritando dentro da caixa, tanta que até mesmo o Quebrador de Feitiços estremeceu. Seria um longo e árduo trabalho para remover todas essas proteções - sem contar o fato de a tranca estar tão derretida que a parte de cima fundiu-se a de baixo.

Um gelado vento outonal adentrou pelo espaço aberto, balançando suavemente os cabelos negros de Hélion. Ele inspirou aquele cheiro - o cheiro do outono sempre o deixava nostálgico. Lembrava-o de dias felizes que haviam escapado por seus dedos. Lembrava-o de dias felizes que nunca teve. Lembrava-o dela.

Hélion voltou os olhos escuros novamente para a caixa chamuscada. Suspirou profundamente, remexendo os dedos, preparando-se mental e fisicamente para o trabalho que estava prestes a iniciar. Sabia que passaria o tempo que fosse preciso trabalhando naquelas proteções. Devia isso à Lucien.

• • •「🌸 🔥」• • •

Exausto, Hélion afundou-se contra a enorme cadeira estofada. Quase todos os feitiços protetores daquela maldita caixa já haviam sido quebrados. Olhando para cima, o macho observou que um novo dia começara a surgir no horizonte, lembrando a ele que passara dois dias e uma noite concentrado naquela tarefa, parando apenas para uma ou outra refeição quando sentia-se faminto demais para prosseguir. Não havia tempo a perder, Lucien fizera o pedido pelos escritos há quase um mês agora, o que estaria achando dessa falta de retorno?

Mas Hélion não podia entregar a ele meias respostas, manuscritos tão confusos e incoerentes que só trariam mais dúvidas ainda ao casal de parceiros. Recusava-se a fazer isso tanto com Lucien quanto com Elain, que era doce e meiga demais - o que naturalmente fazia os machos caírem aos seus pés, e Hélion não era exceção.

Restava agora uma proteção. Uma que Hélion não fazia ideia de que estava ali até deparar-se com ela. Uma que ele nem mesmo entendia o por que estava ali. O feitiço de proteção era tão intrincado e antigo e preciso que era necessário um ser essencialmente único para removê-lo. Uma proteção que, claramente, havia sido obra do destino.

Hélion podia estar extremamente cansado, mas não podia negar que aquilo era extraordinariamente impressionante. Os fios do destino eram tão entremeados e complexos que, o que quer que tivesse sido trancado naquela caixa quase um milênio atrás, estava destinado a ser aberto por Lucien. Pois, de fato, a proteção recusava-se a ceder a qualquer tentativa de Hélion de removê-la, fazendo o escudo invisível arder em chamas sempre que o macho tentava um novo contragolpe. O macho apenas descobriu a forma de remover a proteção quando, contrariado, parou para encher sua taça de vinho e sem querer derramou um pouco do líquido arroxeado sobre a pequena caixa cinzenta. Inexplicavelmente, o líquido removeu um pouco da fuligem que estava entremeada no baixo relevo da madeira, fazendo com que os escritos hieróglifos se pronunciassem. Foi necessária muita pesquisa para compreender o que diziam, mas, por fim, Hélion chegou a uma tradução que se aproximava a:

"Apenas o filho perdido do Sol, cuja chama interior arde com o desejo oprimido, será capaz de desvendar o mistério aqui contido."

Era um tiro no escuro, mas a essa altura Hélion apostava em qualquer coisa. E achava que Lucien faria o mesmo.

Com um breve bilhete contando sua trajetória até aqui e algumas instruções com contra-feitiços, Hélion mandou que entregassem os manuscritos - juntamente com a caixa - diretamente nas mãos de Lucien.

Agora restava a Hélion torcer para que seu filho tivesse herdado ao menos o menor fio do poder que corria em suas veias.

Agora restava a Hélion torcer para que seu filho tivesse herdado ao menos o menor fio do poder que corria em suas veias

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1- Interdiu significa Diurno em latim

Corte de Flores FlamejantesWhere stories live. Discover now