CENAS EXTRAS - A Nova Vida

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Acordei com uma dor de cabeça que parecia uma ressaca. Abri os olhos, a pouca luz da cortina fazendo eu enrugar o cenho.

Levantei, vestindo apenas uma blusa comprida, eu fui para o banheiro encarar meu estado caótico com os cachos ruivos volumosos e desgrenhados.

O plantão de ontem no trabalho tinha sido difícil, não tão cheio mas casos complexos que demandam toda a atenção da equipe.

Meu olhos azuis que costumam ser vívidos estavam um tanto opacos, cansados. Até minha orelha esquerda, onde eu tinha alguns piercings, parecia um tanto vermelha e sensível, precisando de cuidados.

Eu não sou exatamente sensível com sangue, mas não me agradava a ideia de remexer nos órgãos internos de uma pessoa. Entretanto ajudar e curar alguém me parecia o ideal; enfermeira, portanto, era a carreira perfeita. Difícil, trabalhosa, mas me fazia feliz. Claro, a área da saúde sempre é marcada por pressão, exaustão, e casos perdidos depois das vitórias.

Ontem tínhamos perdido um paciente. Na verdade, perdemos dois. Ou quase.

Ao escovar meus dentes minha gengiva coçava e foi espetada por uma dor fina como navalha. Cuspi a pasta; vermelho sujou a pia antes de lavá-lo. Estava sensível e se rasgando sob a escova. Isso, além de um pouco de náusea, sensação de ressaca e outros pequenos e inconvenientes detalhes, vinham depois que eu dava uma de herói — como ontem, ao salvar um paciente.

Tinha uma coisa, que eu nunca soube o que era exatamente, que pulsava dentro de mim — e não espertinho, não estou falando de sangue — era volátil, forte e luminosa.

Quando criança era muito discreta, apenas um formigar sob a pele, uma sensação de poder fazer algo e não saber o que é; como um membro fantasma que anseia se mover. Com ela, certa vez, eu curei a pata quebrada do meu cachorro.

Ele estava chorando quando veio correndo — minha mãe por acidente tinha deixado cair panelas pesadas e, com ele logo aos seus pés, acabou sendo atingido — eu tentei acalmá-lo, fiz carinho em seu pelo enquanto o formigar se intensificava. Daí eu toquei sua pata, que se dobrava de maneira anormal, e ele parou. Ficou quieto, tão quieto que escutei um pequeno ruído que virou estalo quando sua pata se alinhou.

Minha mãe quando foi vê-lo, com a pata já no lugar, deduziu que apenas tinha doído muito. Já eu entendi o que houve; eu tinha o curado. Guardei esse segredo e procurei esquecer, por conta da estranheza.

Lembro que no final da mesma semana, adoeci, febre alta e fadiga. Hoje eu sei o motivo.

Na adolescência, quando eu me descontrolava emocionalmente eu literalmente brilhava, a coisa tomava força e forma de raios de luz. Eu evitava, mas às vezes eu tentava manipulá-la. Eram poucas as vezes que eu o fazia, geralmente era para salvar algum paciente do hospital.

O de ontem, por exemplo, era um homem, Júlio; gente boa, simpática e piadista. O caso era de falência cardíaca — o coração do homem simplesmente não funcionava mais como deveria e estava alavancando pressão em outros órgãos. Foi necessário retirar o coração e deixá-lo na circulação externa, rezando para que uma doação viável chegasse. Seis horas depois conseguimos um doador compatível no hospital do outro lado da cidade. Ele viveria.

Entretanto, quando o órgão já estava chegando, há apenas uma hora e meia de viagem, Júlio teve uma embolia.

Eu estava cuidando daquele andar, e fui a primeira a socorrer; não tinha médicos lá, estavam em ligação com o sistema doador de órgãos e preparando a sala de cirurgia. Recaiu sobre minhas mãos.

Fiz o procedimento tentando retirar o coágulo e massagem cardíaca. Não funcionou. Ele declinou quase até a morte. Daí eu parei de me mover, respirei fundo e deixei romper a tênue barreira que segurava a luz.

Júlio resistiu, respiração tranquila, até que o coração novo chegasse para que pudesse fazer a cirurgia. O quarto tinha se iluminado, e eu automaticamente fiquei tonta, fraca durante o resto do serviço.

Enquanto eu me arrastava para fora, já tendo falado com outras enfermeiras para que os cirurgiões responsáveis pudessem agir, eu escutei um cara gritando.

Eu já estava no final do salão, esperando o elevador, e olhei para trás, alguém corria e gritava Amélia, Amélia.

Meu elevador chegou, eu entrei, minha cabeça começou a latejar. O estranho foi sentir o formigar sob minha pele; geralmente depois de usá-la a luz se acalmava por um tempo. Mas agora ela mordiscava e tremia por dentro como uma fogueira crepitando ao receber lenha.

Quando olhei para o saguão novamente, após apertar para o andar superior onde tinha a sala das enfermeiras, eu vi quem gritava.

Um homem de pele clara, alto de ombros largos, cabelo escuro com mechas curtas sobre a testa e roupas pretas. Ele olhou a equipe médica com desapontamento e se retirou para onde viera, cabisbaixo.

Ele não olhou na minha direção, a porta do elevador já fechava quando eu consegui ver um brilho verde do seu rosto e então houve uma luz atrás dele. Sozinha naquele caixote de ferro, eu estourei em luz.

Agora, terminando de prender o cabelo de frente para o espelho já com o uniforme para ir trabalhar, me perguntava quem ele seria. Se era igual a mim.

Se o veria de novo.

De Cara Com A MorteWhere stories live. Discover now