EPÍLOGO

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A fama geral é que entre Vida e Morte a segunda sempre é a cruel, que nos tira tudo e só traz sofrimento no lugar. Mas a fama geral não costuma ser a verdade, e quem sempre causou sofrimento foi a Vida. Uma versão atrás da outra. Mas quem pode culpá-la? Nunca foi capaz de ser presa em um único ser, numa única forma, era de certa modo, previsível. Já a morte... A ausência, era de se imaginar que não conseguiria manter nada sobre as mãos por muito tempo.

A Terra tremeu com o jato de vida, revigorou-se. O jardim voltou a sua época dourada, e a árvore da vida e da morte resplandeceu e quase alcançava o próprio paraíso. Já a Morte era subjugada, esquecida e posta de lado.

Esperou, porém; manteve-se lá, com fios de esperança arrebentando-se a cada segundo. Retornaria a sua sem fim caçada em busca da Vida em todos os seres? Ou ela retornaria, constante, renovável como era?

Debaixo da gigante mãe de sua amada e de si próprio, ele aguardou até o dia virar noite e a noite virar dia, sucessivamente, esperando que ela surgisse como fez no início dos tempos.

Não ocorreu.

Com relutância, no entanto, ele se foi. Voltou para o mundo real junto das pessoas. Ainda visitando a árvore todos os dias, esperando que ela estivesse lá.

De alguma forma, ele estava sim, quebrado, destruído, morto, mas não do mesmo jeito que estivera no ciclo passado; tinha esperança pura e verdadeira. Não se excluiu, não desistiu de tudo. E toda vez que era necessário levar alguém seu peito doía como não doía há muito tempo — não estava mais anestesiado pelo costume.

Passou a viver entre os humanos depois de algum tempo, a esperança se tornando apenas uma memória doce, distante. Ela havia doado-se para o mundo, estava em tudo, então ele decidiu que não a abandonaria, não ficaria distante. Fosse em pessoas, animais, na natureza.

E até certo ponto, ele estava correto. A essência junto com a vida espalharam-se pelo mundo, mas a essência era mais volátil. Ela tinha a própria vida. Era um ciclo, e se não doesse tanto, talvez ele lembrasse que nunca teria fim.

E foi como numa tempestade de raios numa noite escura como nanquim. Suspeitou que seu coração não batia e sim zumbia pela velocidade. Ficou sem ar, suas mãos tremeram tanto que deixou o que segurava cair e quebrar num baque surdo. Ele saiu correndo, pela rua, pelos carros, não se importou. Seu corpo estava estático e sem precisar de um comando claro já estava em outro lugar, um que desconhecia; não importava, estava perto, perto demais.

Lá, a chuva já caia como uma cortina brusca e pesada. Ele ainda corria, ao longo da rua, de casa em casa tentando encontrá-la.

De repente seu corpo parou, ficou duro como estátua. Aquela luz chamando a sua, provocando-a como antes. Como há muito tempo não fazia mais.

Ele se virou, e pela janela viu a Vida em sua nova fase. Sabia que era ela, porque no cômodo escuro, ela se iluminava como um sol numa galáxia desconhecida. O rosto diferente, mais velho do que o anterior, mas tão familiar.

Ele chorou como no dia que a perdeu, entre risos e gritos sufocados pela chuva e trovões.

Ao um relâmpago cortar o céu, a porta se abriu.

Ela estava lá de braços cruzados, agora não brilhava mais, apenas na visão dele como um presente divino.

— Não devia ficar aí numa tempestade de raios.

Ele não se pronunciou, não conseguiu, não encontrou voz, palavras. O tom era o mesmo, marrento e preocupado. Ela juntou o cenho na ausência de resposta.

— Você está bem?

E como não estaria? Deuses, ele estava inacreditável. Assentiu em concordância. Ela suspirou e colocou os cabelos acobreados por de trás da orelha, onde tinha um piercing ou dois. Ele se encantou com todos os novos detalhes. Das pintas em seu rosto, aos olhos azuis cristalinos.

— Acho que o frio te fez mal, entra aí, vou te arranjar uma bebida quente.

E ele entrou.

— Como se chama? — A voz fazendo cócegas no fundo das suas lembranças.

— Samael... E você?

— Zariel.

Ela o levou para a cozinha, onde lhe serviu chá quente e disse para ficar e só ir embora quando a chuva passasse. A chuva não parou naquela noite. Palavras e histórias foram tecidas a noite toda, entrelaçando curiosidades, segredos e contos passados esquecidos pelo tempo de uma vida.

A chuva cessou. Samael não foi embora.

Seguiu-se para o resto da eternidade, a Morte buscando sua amada de alma em alma.

Porque ele só existia com ela, e ela, só vivia de fato ao seu lado.

De Cara Com A MorteWhere stories live. Discover now