CENAS EXTRAS - A Filha De Lilith

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Estava sentada no sofá assistindo TV há provavelmente horas e começava a sentir minha coluna doendo.

As cicatrizes do meu rosto, embora implícitas e até chamativas, não doem ou coçam mais. Entretanto, o hábito de ficar deslizando os nós ou as pontas dos dedos sobre elas se criou, quase como mexer no cabelo; este que eu havia permitido crescer mais de um lado para que tapasse o restante de cartilagem estranha que restou da minha orelha.

O tablet aberto em um programa de desenho descansava sobre minhas pernas cruzadas enquanto a caneta balançava inquieta nos meus dedos.

Nessa semana completava mais um ano que ela havia partido e nunca mais voltou.

A animação que eu assistia era um dos projetos que eu tinha participado na equipe de designer, onde uma das personagens que eu fiz era exatamente como ela; os cabelos dourados, o rosto delicado, bochechas rosadas e até olhos parecidos. Até asas eu fiz questão de colocar.

— Amor, a comida tá pronta — escuto Katy avisar da cozinha.

Entretanto eu não me levanto, sigo ali, observando a animação mas sem assistir — e indecisa sobre o que desenhar, necessitada de desenhar algo.

Você tem um traço bacana, se investir dá pra fazer carreira, lembro dela ter dito uma certa vez.

— Carly, você tem que comer. — Katy havia se sentado ao meu lado com dois pratos de comida.

Eu suspirei, era uma semana quase que improdutiva e cabisbaixa para ambas. Completava dez anos desde que Amélia se foi, dez anos desde o acidente de carro.

Desde que ela permitiu que a Vida a matasse.

Eu e Katy almoçamos e assistimos à TV, até que à tarde, umas três horas, ela teve que sair para trabalhar.

— Vou tentar a terceira casa para aqueles recém casados — suspirou.

Dei-lhe um beijo rápido nos lábios e pisquei para ela.

— A terceira é da sorte.

Katy saiu e eu automaticamente fiquei entediada e inquieta, pensando naquela época distante da minha adolescência. Resisti a vontade de perambular feito louca pela casa, liguei a caixa de som em um rock calmo e baixo e investi contra o tablet em traços rápidos e habilidosos.

Pensei no Mammon enquanto desenhava e acabou saindo um homem moreno de cabelo preto curto e olhos bordô. Sorri, até que o Mamão tinha ficado bem feito. Finalizei a arte já no final da tarde e postei no meu Instagram profissional onde publicava trabalhos e treinos como este.

O meu celular então tocou e Velha apareceu na tela; atendi e a voz já arrastada e idosa da minha vó soou saudosa.

— Oi filha, como está?

— Estou bem, e a senhora? A Liz está cuidando bem de você?

— Ainda não sou debilitada, só velha, obrigada — resmungou.

Eu ri das reclamações que não mudavam, com um pouco de saudade no fundo. Já tinha alguns meses que não a visitávamos, e com a quantidade de projetos com os quais eu me envolvi seria difícil passar um tempo com ela até o final do mês.

Katy e eu sempre a visitávamos ou a recebíamos em casa em feriados ou em aniversários, ás eu vezes eu simplesmente ia lá ver como ela estava e passava a tarde.

Depois que eu e Katy começamos a namorar, mantivemos segredo para os pais dela, mas revelamos para minha avó — ela, que sempre soube sobre minha orientação sexual, não foi nada menos do que gentil com a Katy, coisa que ela raramente é comigo.

Houve um momento em que os pais da Katy descobriram, diante nosso extremo contato (que foi disfarçado como luto pela perda da Amélia) e pelo fato de terem revistado o celular dela. Eles então passaram a proibi-la de me ver, sair de casa, etc.

Nessa altura do campeonato estávamos prestes a nos formar no ensino médio, meu traço já tinha amadurecido um bocado e eu trabalhava em um supermercado e uns trocados na internet postando arte.

Quando fizemos dezoito convidei Katy para vir morar comigo em um apartamentinho que calculei que poderíamos pagar, nessa época ainda era perto da minha vó. Ela aceitou.

Desenhar começou a pagar bem e eu decidi largar o supermercado e fui para faculdade de designer, Katy foi pro marketing e vendas; com o tempo a situação foi melhorando e nos mudamos para uma área afastada da cidade porém mais agradável.

Os pais da Katy simplesmente a renegaram quando ela fugiu. Ligaram apenas no primeiro ano, no aniversário dela, pedindo para que ela fosse embora. Depois nunca mais.

Há dois anos, mais ou menos, pedi Katy em casamento; ela aceitou, e fizemos uma linda festa — mais casual, com amigos e minha vó, claro. Ela chegou a chamar os pais, mas eles não foram.

— Katy também está com saudade da senhora — respondi uma das suas perguntas sobre como estávamos. — Ontem mesmo ela falou que estava salivando pelo seu bolo de fubá.

— Se vocês vierem pra cá, eu posso fazer — ela imaginou ácida.

— Tá legal mal humorada, já te falei, final do mês eu tô aí.

Finalizamos a conversa nos despedindo e voltei a ficar sozinha.

Bom, eu geralmente nunca estava sozinha, mas desde que eu passei a controlar melhor o lance do sangue demoníaco passei a afastar os monstros de perto da nossa casa e da Katy, principalmente, não querendo que nada de mal aconteça como já havia acontecido com ex-namoradas.

Provavelmente o fato de ser filha de Lilith ajudava com isso; outra que nunca mais vi. De toda aquela confusão o único que raramente aparecia, às vezes quando eu chamava, era o Mamão.

Lembro que na primeira semana que Amélia se foi, sem a presença de Samael e perdida do que poderia ter acontecido, eu me vi repetindo seu nome e cheguei a tirar um pouco do meu sangue para ser ouvida.

Mammon apareceu, extremamente sério e mal humorado; levando em conta o que houve no nosso encontro anterior era justificável.

— Já é quase uma mestiça de verdade, até faz rituais — ironizou. — Ah, mestiça não deve lhe caber mais, não é, vossa alteza?

Ignorei a provocação e cruzei os braços.

— O que houve com eles? Samael desapareceu.

Mammon sorriu.

Mas não me soou irônico, sarcástico ou ácido.

Pareceu melancólico.

Então ele me contou tudo, em detalhes. Como ele sabia eu nem imaginava, mas tinha ficado claro que Samael não voltaria.

Passei o restante do dia um tanto mórbida, sem conseguir trabalhar. Pensando quando seria a próxima vez que veria o anjo.

Se fosse, apenas, na minha última vez.

De Cara Com A MorteWhere stories live. Discover now