I52I - Sangue

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Com minha determinação renovada, eu me movi pelo pátio buscando uma saída. A constatação de que eu não tinha de fato um plano para lidar com o Lukoi não me incomodava. Enquanto eu pudesse confiar no meu poder, não... no meu próprio ódio, nada me impediria. 

De forma tão fácil quanto cheguei nessa conclusão, vi se ela se esvair pelos meus dedos assim que a caixinha sussurrou: Nosso sangue está aqui. Suas palavras foram embaladas por uma corrente de ar quente que agitou as flores dos canteiros, pétalas flutuaram lentamente, espalhando perfume no ar.

Eu não estava surpresa por ter sido enganada, mas ainda sim, meu corpo foi inundado por uma tensão raivosa que fez meus punhos se fecharem. 

O Homem Pálido reapareceu por uma das portas altas de madeira cor de cereja, um sorriso de escarnio estava impresso em seus lábios quando viu minhas roupas molhadas. Então você é rancoroso? Pensei, bom, eu também sou. 

Atrás dele vinha um homem de pele morena, cabelos escuros e cacheados como os meus. 

Eu não o conhecia. O rosto que eu guardava como uma memória preciosa de um homem sorridente com olhos calorosos em nada se assemelhava a expressão fria e indiferente que aquele homem portava. Meu pai August Nowak estava morto, fora atacado diante dos meus olhos quando atravessou a cerca da vila para pegar as flores vermelhas que eu tanto admirava. Seu braço havia sido arrancando e ele arrastado para entre as árvores, para dentro do Limite, de onde nunca saíra. 

Ele não podia estar vivo, porque assim minha mãe não teria definhado lentamente após a morte dele, até o ponto que em uma noite ela lembrasse onde ficavam guardadas as papoulas venenosas na estante. Ele não podia estar vivo, porque assim eu não poderia ter encontrado a minha mãe no chão da cozinha, seu corpo ardendo em febre e me implorando que a deixasse partir. Ele não podia estar vivo, porque assim eu não teria encontrado a faca de caça, não teria perfurado a pele suave dos pulsos dela e assistido sua vida se esvair. 

E então eu nunca teria ouvido a voz. A voz que exigia que eu repetisse, que ceifasse outra vida, que mergulhasse meus dedos na poça de sangue escarlate. 

Meu estomago se contorceu enojado e eu agradeci por ter tido coragem naquela noite, por ter me arrastado para fora da casa, por ter tropeçado no caminho de pedras e batido meu joelho em uma delas, por ter me concentrado na dor para abafar aquela voz. 

Durante anos eu tinha culpado o Lobo por todas as coisas ruins que haviam acontecido na minha vida, o que não era inteiramente verdade no final das contas. O destino podia ser cruelmente engraçado ás vezes. Eu havia me apaixonado pelo que mais odiava e a minha mais dolorosa dor havia sido causada por quem eu amava. 

- Oi, pai. - Falei, forçando um sorriso que eu esperava esconder toda a dor que aquelas palavras custavam. 

- Deveria ter permanecido discreta, florzinha. - Respondeu, mesmo que houvesse usado o apelido pelo qual sempre me chamava suas palavras foram tão frias quanto seus olhos pareciam ser. - Levem-na para trocar essas vestes, estarei esperando na sala de jantar.

Antes que eu fosse capaz de protestar ele se virou costas, duas serviçais entraram no pátio e caminharam em minha direção. Puxei minha espada, colocando-a sobre o pescoço de uma das jovens que arfou com evidente medo. 

- Sinto muito, mas não posso ficar. - Falei, forçando minhas palavras a soarem duras, como as suas foram outrora. - Tenho um acordo para cobrar. - Mirei o Homem Pálido com os olhos.

- Não sei a que acordo se refere. - Respondeu o Homem Pálido. - Afinal já cumpri minha parte. - Garantiu. 

- Estamos em Serestia? - Perguntei confusa. Não poderia ser que...

Uma dor lancinante perfurou meu braço, soltei a espada incapaz de sustenta-la. A garota escapou do meu alcance, sendo consolada pela segunda serviçal. Olhos como os meus me encararam, rangi meus dentes, suportando a dor física como se não fosse nada e de fato não era. Odeie, odeie, odeie...

- Todos se retirem, quero ter uma conversa a sós com a minha filha. - Ordenou meu pai.

- Filha? Você não tem esse direito. - Cuspi no chão. - Perdeu ele quando nós abandonou naquela vila desprezível. Pensávamos que estava morto, sabe como a minha mãe se sentiu sem nem mesmo uma lápide para chorar? 

Sabe que ela escolheu morrer para se juntar a você do que continuar comigo?

Pisquei para afastar as lágrimas amargas, eu não podia ceder a essa dor que rasgava meu coração, que eu tinha silenciado com tanto afinco.  Algo com sua expressão seguinte me fez pensar que ele sabia ou talvez fosse apenas a minha mente querendo associar aquele homem com a imagem de um pai carinhoso que me consolaria. 

- Sinto muito florzinha, mas eu não podia voltar. - Falou, sua voz adquirindo o tom de que me lembrava, gentil e apaziguador. - Quando meu sangue foi derramado fora do Limite qualquer Lican poderia senti-lo, era uma questão de tempo até virem atrás de mim.

Bufei, deixando transparecer o meu asco. 

- Então isso é tudo? Usou a vila para se esconder e quando seu disfarce correu risco, você escolheu ir embora. - Afirmei.

Ele se aproximou o suficiente para tocar meus braços. Pude ver que além da expressão fria de seus olhos, seu rosto também havia mudado, endurecido, contornado por marcas de expressão, afinal tinham sido quinze anos desde que eu vira meu pai pela última vez. Retrai meu corpo saindo do seu alcance, só então notei que nem tudo tinha sido mentira que o espaço de um dos seus braços continuava vazio.

- Fiz isso por você. Entre e se aqueça, contarei tudo.

***

- Quando a primeira guerra pelo Continente foi iniciada os fracos foram subjugados para servirem. Assentamentos, vilas e cidades foram tomadas pelos que se diziam os mais fortes: Asatrus, Esimus e Licans. Laldean uma cidade que prosperou através do comercio e da paz com seus vizinhos permaneceu intacta por anos, graças a força de vontade dos seus habitantes para lutar e proteger, mas também por uma benção de um deus menor. No coração da cidade havia uma fonte de água capaz de curar os feridos e doentes, ela floresceu no passado, depois que o deus menor secretamente se apaixonou por uma mortal. Para que os dedos dela não fossem feridos quando ela colhesse trigo, para que o frio não prejudicasse os seus pulmões, para que ela fosse capaz de suportar a dor que o deus menor não podia tomar, ele tornou encantada a fonte de sua vila. Quando a mortal se foi, o deus menor proclamou que a fonte era o símbolo de seu amor e por isso nunca deveria ser corrompida ou uma terrível maldição recairia, um desejo de tomar tudo que assim como a fonte, não era deles. Muito tempo depois, durante uma invasão a Laldean, a princesa da cidade se viu encurralada em frente a fonte sagrada, seus amigos e parentes eram mortos diante dos seus olhos, seu único amor estava mortalmente ferido aos seus pés, de forma que a princesa com suas mãos sujas de sangue não se lembrou da maldição do deus. Ela mergulhou as mãos na fonte e a água enquanto ela molhava os lábios de seu amado se transformou em sangue, assim foi feito o primeiro Liones.

VermelhoWhere stories live. Discover now