O frio parecia tomar mais ênfase naquela manhã. O céu ainda estava branco como se fosse uma grande manta sobre a terra e a aparência de uma leve chuva parecia cada vez mais evidente. E para piorar, a dor em meu ventre parecia transformar meus pés em dois cubos de gelo irremediáveis.
Eu vesti a jaqueta de jeans puído sobre a camiseta preta de uma banda qualquer e saí para o centro do acampamento. Percebi que todos já estavam sentados em cadeiras espalhadas em volta da fogueira enquanto comiam o café da manhã. Menos Andrea, que parecia afiar uma faca em um afiador. E Carol, que era quem estava cozinhando naquele momento.
— Bom dia! — Cumprimentei a todos assim que me aproximei do grupo coçando meus olhos e praticamente todos responderam. Menos Daryl, que estava sentado em um dos lugares enquanto comia um prato de ovos fritos, porém eu já estava acostumada com a falta de educação costumeira.
Me aproximei da mesa de piquenique para pegar um prato limpo, porém Dale me entregou um antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Eu encarei o rosto do senhor idoso, achando suas ações bem rápidas, e percebi que o mesmo olhava de forma distante em direção ao celeiro há alguns metros do acampamento. Ele parecia um tanto preocupado.
— Algum problema? — Questionei ao olhar do celeiro para ele novamente e peguei um garfo sobre a mesa.
— Não. — Ele sorriu e colocou seus olhos gentis em mim. — Tem ovos e carne para o café da manhã. Sirva-se! — Apontou para o local aonde Carol estava de joelhos, remexendo em uma frigideira no fogão de acampamento.
— Ok! — Respondi desconfiada ao me aproximar de Carol e lhe mostrar o meu prato lançando um sorriso calmo em sua direção. A mulher rapidamente entendeu o pedido silencioso e me serviu com uma porção de comida sorrindo de volta.
Caminhei até a cadeira vazia em frente ao local aonde Andrea estava sentada e me sentei sem nenhuma pressa. Pronta para tomar meu café da manhã como já fazia todos os dias.
— Andrea, você ainda tem aqueles comprimidos para cólica? — Questionei baixinho para a loira que rapidamente colocou os seus olhos turquesas em mim. — Eu estou morrendo. — Avisei demonstrando dor.
— Não sei. Acho que ainda tenho alguns. Mas preciso procurá-los. — Concordou assentindo um pouco, mostrando que eu poderia ficar com alguns.
— Obrigada! — Agradeci voltando a comer. Porém, não demorou muito até que Glenn se levantasse do seu lugar com suas mãos escondidas dentro dos bolsos de suas calças jeans, e passou alguns poucos segundos nos encarando como se alguma coisa muito estranha estivesse acontecendo.
— Pessoal... — O asiático chamou e todo mundo acabou o encarando com curiosidade. — O celeiro está cheio de caminhantes! — Contou em um único sopro. E com uma voz tão calma que mais parecia uma brincadeira.
O silêncio se tornou palpável entre todos e nós continuamos encarando o garoto como se ele estivesse completamente louco.
Eu encarei o rosto de Rick e percebi a expressão mortal que ele tinha ali. Quase como se fosse começar a rosnar feito um cão e Shane não parecia muito diferente disso.
— Isso é uma gíria? O que isso quer dizer? Eu não entendi! — Aleguei ao franzir o meu cenho com confusão e fitei os rostos daquelas pessoas de um por um. Afinal, a sua alegação era completamente surreal! Então, não tinha como Glenn estar falando sério.
— Não entendeu porque não é uma piada! — Daryl respondeu quando deixou o seu prato de lado rapidamente e ficou de pé com agilidade.
— Não! Só pode ser uma piada! Isso é uma piada! — Shane exclamou completamente revoltado quando soltou o seu prato com força em cima da mesa de piquenique, fazendo um alto barulho grosseiro e rapidamente começou a andar com passos apressados em direção a trilha que daria para o celeiro.
Como se tivessem dado a largada, todos nós nos levantamos de forma frenética e começamos a seguir o policial que já se destinava ao celeiro e quase o alcançava.
Shane foi o primeiro a chegar no portão de madeira da construção, obviamente. E se aproximou o suficiente para colocar o seu rosto perto de uma brecha que o permitiria analisar o que havia ali dentro.
Entretanto, uma observação profunda não seria necessária, já que nós pudemos ouvir os rosnados e ranger de dentes vindo de lá de dentro assim que a massa humana do nosso grupo se colocou como uma parede bem atrás do oficial encostado no portão.
— Dessa vez você não vai me convencer que está tudo bem! — Shane voltou para perto de Rick mostrando toda a sua raiva no tom da sua voz.
— Não. Eu não vou. — Rick respondeu do mesmo jeito bravo enquanto Lori abraçava mais o filho que estava de pé em frente ao seu corpo. — Mas nós somos convidados aqui. Essa não é a nossa terra. — Lembrou ao encarar a esposa com preocupação.
— Jesus! Essa é a nossa vida, cara! — Shane se moveu de maneira inquieta ao não se decidir se voltaria a se aproximar do celeiro, ou enfrentaria o xerife de perto.
— Fale mais baixo! Você vai irritá-los. — Lori advertiu o Oficial enfurecido.
— Não podemos varrer isso assim para debaixo do tapete! — Andrea interveio de braços cruzados ao concordar com Shane.
— Não, não mesmo. Não tem como, cara. — T-Dog respondeu ao mesmo tempo em que eu me aproximava daquela mesma brecha com meus braços cruzados e espiava lá dentro enquanto a discussão se iniciava.
Um ar fétido de carne podre tomou minhas narinas como um soco no rosto. E quando meus olhos puderam se acostumar, eu pude ver alguns dos mordedores caminhando de modo letárgico de um lado para o outro como se farejassem algo. Nós.
— Ok! Veja! — Shane começou tentando parecer mais calmo ao se aproximar de Rick de novo, mas a sua contenção o deixava mais doentio. — Ou nós entramos lá e fazemos o que deve ser feito. Ou nós vamos embora agora. — Propôs, como se não houvesse espaço para barganha. — Temos falado sobre Fort Benning desde o início. — Continuava enquanto eu retornava meus passos para perto do grupo preocupado de novo.
— Nós não vamos a lugar algum! — O xerife gesticulou com exasperação, parecendo tentar convencer o amigo baseando-se na força. Mas Shane acabou rindo de escárnio como se debochasse de um louco.
— Por quê, Rick? Por quê? — Questionou com revolta em sua voz.
— Porque a minha filha ainda está por aí. — Carol entrou na conversa cruzando os seus braços com firmeza e seriedade, apesar da sua voz ser baixa e fraca. Para a nossa surpresa Shane acabou rindo um pouco mais, parecendo completamente louco, quando esfregou o seu rosto com suas mãos.
— Tá bom. Tá. — Ele tentou controlar o seu riso. — Eu acho que está na hora de nós cairmos na real e começarmos a pensar em outras possibilidades, ok? — Avisou como um presságio ruim e aquilo foi o suficiente para lançar uma onda totalmente desconfortável sobre nós.
— Nós não podemos deixar Sophia para trás. — Rebati com um riso sem humor, lhe mostrando que cogitar aquela ideia era totalmente cruel.
— E não vamos! — Rick concordou ao gesticular para mim com firmeza e aumentando o tom da sua voz.
— Estou perto de achar a garota agora! — Daryl interveio com o seu jeito raivoso ao aumentar seu tom de voz acima de todos nós. — Acabei de achar a boneca dela há dois dias atrás...! — Lembrou gesticulando com firmeza.
— Você achou uma boneca, Daryl! Foi isso o que você fez! Achou uma boneca! — Shane o rebateu o interrompendo por cima de sua voz.
— E você nem sabe do que está falando! — O Dixon acusou ainda mais irritado quando jogou o seu braço contra o policial para demonstrar toda a sua raiva em um gesto.
Eu me aproximei rapidamente do caçador, pois percebi que a aproximação repentina de Daryl contra Shane poderia ser um problema eminente, mas Rick pareceu perceber também, quando se colocou entre os dois homens e esticou o seu braço entre eles para manter uma distância segura.
— Hey! Ok! Não precisamos disso aqui. — Rick alegou com a voz baixa e calma, tentando apaziguar os dois. Mas eu soltei um suspiro entediado ao perceber que não adiantaria.
— Eu só estou dizendo o que precisa ser dito em voz alta há muito tempo! — Shane gritou à plenos pulmões. — Uma boa pista se consegue nas primeiras quarenta e oito horas! Nós trabalhávamos com isso, cara! É assim que funciona! — Gritou apontando seu dedo indicador na direção do caçador como se o ameaçasse.
— Shane! Pare com isso! Agora! — O xerife gritou empurrando o amigo para longe, mas ele se desvencilhou de suas mãos e voltou para Daryl de novo sem desistir.
— Não! Me deixe dizer mais algumas coisas! — Alegou em total descontrole ao demonstrar todo o seu surto. — Se ela estiver mesmo viva e viu você por aí todo esquisito com sua faca e orelhas de defuntos penduradas no pescoço, ela correu na outra direção, cara! — Declarou aos gritos enquanto apontava o dedo para o homem sem medo.
— Orelhas? — Eu questionei ao franzir o cenho com confusão, mas era óbvio que ninguém estava prestando atenção em mim. Ou teria tempo para discutir isso. Já que Daryl fechou os seus punhos com força e trancou o seu maxilar com ódio assim que ouviu essas palavras saindo do outro homem.
— Eu vou te mostrar quem é estranho aqui! — Apontou o seu dedo indicador em direção a Shane com tanta intensidade que quase conseguiu tocar o nariz do outro. Mas Rick acabou ficando entre eles e tentou separá-los empurrando um para longe do outro com suas mãos em seus peitos.
Uma confusão caótica se iniciou em questão de segundos. Gritos começaram a ser ouvidos como uma tempestade de ofensas.
Os dois homens pareciam dispostos a se baterem com vontade enquanto Rick tentava apartar a briga que se iniciava. T-Dog tentou ajudar o xerife segurando Shane pela cintura e o puxando para longe do caçador, enquanto Andrea também se colocava entre eles, na frente de Shane e ao lado de Rick.
Glenn interveio ficando atrás de Rick e servindo como uma camada extra de proteção entre o policial e Daryl, enquanto foi a minha vez de abraçar o Dixon fortemente pelo braço e empurrá-lo mais para trás ficando em frente ao seu abdômen e tentando tapar sua visão.
— Não vale à pena! O problema não é esse! — Eu garanti tentando convencê-lo ao lutar para afastá-lo, fincando meus pés com força na grama e usando isso como uma alavanca para empurrá-lo mais.
Daryl pareceu desistir de lutar contra o Oficial inicialmente, mas os seus olhos mirando exatamente o homem estavam cheios de ódio e raiva mau contida. Como uma ameaça eminente que não poderia ser segurada por muito tempo, seus punhos ainda estavam cerrados e a sua respiração permanecia ruidosa de agitação.
— Eu falarei com Hershel sobre isso. E vamos resolver. — O xerife garantiu quando conseguiu fazer Shane desistir de ir para cima do caçador também já contido.
— E o que você vai resolver?! — Shane gritou contra o homem parecendo mudar o alvo da sua fúria e por um segundo eu acreditei que o soco seria desferido em Rick.
— Já chega! — Lori entrou no meio dos dois e conteve Shane o empurrando para trás.
— Se nós vamos realmente ficar e se vamos limpar este celeiro, eu preciso convencer Hershel disso. Nós estamos na casa dele! — O xerife repetiu apontando para a construção de madeira bem atrás de nós.
Eu me afastei de Daryl quando percebi que ele não tentaria mais contra o policial e me virei para Rick de novo.
— Vocês não estão se perguntando o mais óbvio por aqui! — Falei ao tentar chamar a atenção de todos. — Por que o velhote tem um celeiro repleto de mordedores guardados como um rebanho? — Perguntei de maneira muito desconcertada. — Isso é perigoso e é bizarro! Não faz sentido! — Aleguei olhando o rosto de cada um.
— Hershel vê as coisas lá dentro como pessoas! — Dale respondeu ao tentar explicar também nos olhando. — Pessoas extremamente doentes! — Deu ênfase. — A esposa dele e o enteado dele, os amigos, eles estão lá! — Apontou de maneira mais enérgica em direção ao celeiro.
— Você já sabia disso? — Eu perguntei com acusação ao idoso quando percebi que ele estava muito informado. Então era por isso que ele estava tão estranho essa manhã.
— Sim. Eu soube ontem. Conversei com Hershel. — Me respondeu ao lançar uma expressão firme em minha direção como uma bronca.
— E você nos deixou dormir a noite toda com aquelas coisas lá dentro! — Shane falou irritado ao gesticular com revolta.
— Pensei que nós conseguiríamos sobreviver mais uma noite. E de fato conseguimos. — Dale se virou para Shane com coragem, demonstrando não ter medo do jeito maluco do homem. — Eu estava esperando contar depois de falar com Hershel. Mas Glenn queria fazer isso, falar para todos. — Explicou de uma forma mais calma ao se dirigir para Rick à sua frente.
— Então o velho está totalmente pirado. Se ele pensa que esses bichos estão doentes e são sociáveis! — Apontei com um riso sem humor enquanto balançava a minha cabeça em negativa.
— Vou tentar convencer Hershel que ele está enganado! — Rick avisou em minha direção, mesmo estando falando calmamente com todos.
— O homem está louco, Rick! Você me ouviu? O velho está louco! — Shane gritou à plenos pulmões de uma maneira tão revoltada que até mesmo os próprios mordedores no celeiro acabaram sacudindo a porta de madeira e balançando aquelas correntes com grande determinação quando percebemos os dedos podres se esticarem por entre as brechas de maneira perigosa.
— Estão sentindo o cheiro de carne fresca. — Comentei quando todos começaram a se afastar de maneira amedrontada para mais longe do celeiro.
— Isso só vai agitá-los mais. Vamos embora daqui! — O xerife exigiu ao se virar em nossa direção e abriu os seus braços para conseguir nos fazer voltar pela trilha por onde viemos.
Por falta de outras opções mais seguras, nós acabamos obedecendo ao Grimes e começamos a voltar para o acampamento de maneira preocupada e silenciosa. Depois dos últimos enfrentamentos frenéticos era meio óbvio que o clima entre as pessoas ficaria estranho.
Shane se afastou completamente do grupo e caminhou em direção ao carro que normalmente ele usava. Parecia estar em busca de algo.
Rick acabou caminhando em direção ao casarão da fazenda, o que me fez acreditar que ele procuraria Hershel para terem aquela conversa.
E o resto de nós se encaminhou para a clareira aonde o nosso acampamento permanecia.