Ocultos

Av rmatzenbacher

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[ELEITA A MELHORES HISTÓRIAS DE 2021] [LIVRO 1] O pacato vilarejo de Vaugalath é o lar de muitos segredos mis... Mer

Saudaçōes aos leitores!
Aviso
Dedicatória
Prólogo
I - No princípio só havia a sombra
I | 1
I | 2
II - A visão do fim do mundo
II | 1
II | 2
II | 3
III - Entre o que acontece aqui e lá
III | 1
III | 2
IV - Mundos como bolhas de sabão
IV | 1
IV | 2
V - Do deserto vem uma estranha gente
V | 1
V | 2
V | 3
VI - Os liames que não se veem
VI | 1
VI | 2
VI | 3
VII - Lembranças perfumadas de palha e fogueiras
VII | 1
VII | 2
VII | 3
VIII - Sobre a morte e seus misteriosos mensageiros
VIII | 1
VIII | 2
IX - Diz-se da rainha que devorou a própria filha
IX | 1
IX | 2
IX | 3
X - A figura com asas de ébano
X | 1
X | 2
XI - Sopram ventos e desalentos no vale
XI | 1
XI | 2
XII - Um encontro de arrepiar os pelos da nuca
XII | 1
XII | 2
XII | 3
XIII - O maior de todos os desejos
XIII | 1
XIII | 2
XIII | 3
XIV - O estranho homem de barba longa
XIV | 1
XIV | 2
XV - Sob a sombra do velho salgueiro
XV | 1
XV | 2
XVI - A curiosa lenda dos Manãa-dê tá Galath
XVI | 2
XVII - Acima e abaixo trilha adentro
XVII | 1
XVII | 2
XVII | 3
XVIII - O doce canto do pescador de almas
XVIII | 1
XVIII | 2
XIX - O chamado da sacerdotisa em apuros
XIX | 1
XIX | 2
XIX | 3
XX - O receptáculo da profetiza
XX | 1
XX | 2
Notas finais

XVI | 1

49 10 80
Av rmatzenbacher

Relutantemente, Elysium concordou com o plano de Calendra, que saiu em disparada de volta para o próprio corpo esticado no sofá da sala. Quando voltou a si, uma dor do tamanho do mundo se abateu sobre sua cabeça, e teve de admitir que talvez houvesse superestimado suas habilidades. Custou-lhe um tempo somente para conseguir respirar sem entrar em colapso, pois sua pele tremia sem controle e os músculos saltavam em espasmos violentos.

Ninguém na casa notara o que tinha acontecido, por pensarem que Calendra dormira. Em razão disso, levaram um tremendo susto quando ela retornou, aos rebuliços. Entretanto, muito embora a enchessem de perguntas sobre o que lhe ocorrera, ela não teve condições de lhes responder logo. Após ingerir mais algumas xícaras de chá com calmante e apoiar na cabeça uma nova compressa aquecida fornecida por seu irmão, Calendra enfim pôde contar o que se passara.

Era tarde quando finalizou o relato, pois, mesmo sem se dar conta, ocupara toda a manhã na companhia de Elysium. Ao notar isso, apressou-se na execução do plano, mesmo que sob os protestos ferrenhos de Rohden, que insistira para que ela permanecesse mais um tempo descansando. Como não poderia se permitir aquilo, Calendra o convenceu de que separaria um momento para repousar assim que tudo se finalizasse. Mesmo contrariado, ele concordou, sob a condição de que pelo menos se alimentasse. Então, dirigiu-se para a cozinha a fim de preparar o jantar, bem como as guloseimas que seriam servidas mais tarde — com a ajuda de tia Marion, é claro —, deixando-a enfim só para poder agir.

— Tem certeza de que isso vai funcionar? Nimbas não me parece o tipo de criatura que pode ser manipulada. — Aspen perguntou à Calendra quando ela terminou de enlaçar a fitinha com o seu recado para a raposa na pata direita de Ishtar. Apesar do teor preocupado do questionamento, havia uma excitação no fundo de seu olhar que ele não conseguia disfarçar. Sentados em um banco abaixo da janela, ambos observaram o corvo alçar voo e sumir entre as folhagens das árvores.

Calendra soltou um suspiro.

— Eu não vejo outra alternativa.

— Mas dizer a ele que teve uma visão? E outra, mandar-lhe um bilhete para que Sooúl o abra e leia? Você confia em seu juízo?

— Tudo bem que ela não bate bem das ideias...

— Eu não diria apenas que ela não bate bem das ideias. A velha é completamente maluca!

Ela o olhou com repreensão.

— Você tem uma ideia melhor?

— Bom, não. Mas, mesmo assim...

— Então, já que não temos um plano melhor, faremos assim. — Afirmou, categórica. Viu-o se debruçar no peitoril da janela, seu olhar fixo no horizonte. Aspen estava ansioso, todos estavam, pois as coisas haviam mudado um pouco de figura quando descobriram o que acontecera à família de Elysium. Segundo ele, outras criaturas buscavam caçá-lo, e tais seres poderiam descobrir seu paradeiro mais cedo ou mais tarde. Isso queria dizer que a aventura pela qual tanto aguardaram poderia significar um perigo real. Ainda assim, o desejo de enfrentar aquela situação ardia em suas veias e, na tentativa de passar confiança a Aspen, aproximou-se a fim de tomar sua mão, puxando-o com suavidade para mais perto. Ele não hesitou e a permitiu envolver os braços ao seu redor. Descansou a cabeça em seu peito e respirou fundo, aspirando seu perfume. — Não precisa ficar desse jeito, sentindo essa culpa. Sabemos bem onde estaremos nos metendo, e não há mal nenhum em querer isso.

— Eu só penso que se algo acontecer a qualquer um de vocês não me perdoarei jamais. Tenho medo do que Nimbas dirá, do que isso poderá significar. E se tivermos de fugir também?

Calendra, tentando descontraí-lo, soltou uma risadinha.

— Fugir de Vaugalath, o lugar mais escondido do mundo?

Ele a olhou de lado.

— Não brinque com isso. É sério.

— Eu sei. Desculpe.

— Eu só não quero que ninguém se machuque, ainda mais se for por minha causa.

Calendra franziu o cenho.

— Por sua causa? O que quer dizer?

— Fui eu quem desejou uma aventura, não foi?

— Sim, mas... o que isso tem a ver? — Aspen chacoalhou a cabeça, um olhar arrependido no rosto.

— Nada. Somente neuras da minha cabeça. — Ele desconversou, mas Calendra o apertou com mais força, inclinando o pescoço para poder encará-lo nos olhos. Aspen não a olhou de volta, apenas quando ela esticou a mão e delicadamente puxou seu queixo para baixo. Ele mordia o lábio inferior, porém suspirou ante seu olhar inquisidor, logo murmurando: — É algo em que tenho pensado. E se a visão que tivemos do nosso maior desejo seja responsável por isso, de algum modo? E se o meu egoísmo em almejar escapar desses malditos muros acabe nos colocando em perigo?

— Essa é a maior besteira que já ouvi. — Disse ela.

— Besteira? Eu não acho...

— Olha, primeiro não temos certeza de que realmente vamos correr algum perigo — você e Rohden deveriam parar de pensar só no pior da situação —; segundo, Elysium está fugindo dessas criaturas há mais tempo do que somos sequer nascidos. Então, não vejo como o seu desejo possa ter algo a ver com isso.

— Mas...

— Não. — Ela pousou os dedos nos lábios dele, calando-o. — Deixe de paranóias, está bem? Confie em mim.

Ele suspirou, vencido.

— Tudo bem! Não está mais aqui quem falou!

— Perfeito. — Ela sorriu. — Agora, faça algo útil com essa sua boca e me dê um beijo.

Isso lhe arrancou uma risada.

— Que mandona. — Exclamou ele, mas acabou por fazer o que ela lhe pedira. Inclinou-se na sua direção e capturou seus lábios, envolvendo sua cintura em um abraço apertado. As mãos dela se embrenharam nos fios de cabelo perto de sua nuca, arrancando-lhe um suspiro de contentamento. As coisas teriam seguido daquela maneira não fosse o pigarro que alguém soltou de repente. Ambos viraram-se e avistaram Pavetta parada com a mão agarrada a uma das portas duplas da cozinha, a sobrancelha erguida em zombaria.

— Os pombinhos se importam em dar um fim à sua sessão de beijos e vir até a cozinha? Estamos com fome! — E voltou a sair de seu campo de visão, deixando a porta chacoalhando atrás de si.

Calendra e Aspen se encararam, contendo o riso.

— Melhor irmos logo. Pavetta com fome tem um humor de azedar! — Calendra murmurou, afastando-se do abraço de Aspen, que, com relutância, soltou-a. Esticando a mão na sua direção, ele ainda entrelaçou seus dedos antes de entrarem na cozinha.

O contato não durou muito tempo, entretanto. Bastou que um olhar de Rohden caísse em suas mãos unidas para que o rubor cobrisse as bochechas de Calendra e ela se separasse de Aspen. Ela ainda não havia deixado a vergonha completamente de lado, e não gostava de demonstrar afeto em frente à família, principalmente ao irmão, que era melhor amigo de Aspen e estava encontrando sérias dificuldades em aceitá-los, apesar de não admitir tal fato.

Sentindo a tensão pairando no ar, tia Marion exclamou:

— Sentem-se logo e parem de ficar se embromando. A comida vai esfriar. — Fazendo o que ela ordenara, Calendra se apressou em se sentar no lugar vago à cabeceira da mesa. Aspen se sentou em frente à Pavetta, à direita de Calendra. Tia Marion os serviu com uma porção generosa de batatas assadas e legumes, os quais imediatamente começaram a comer. Até então, não notara o quanto estivera faminta e, por alguns momentos, tudo o que se ouvia no recinto eram os ruídos de mastigação e os murmúrios de satisfação. Ao terminar, tia Marion se recostou no encosto da cadeira. — Então, será que agora vocês podem me contar o que tanto tramam às escondidas? Parece que a noite de hoje vai ser agitada.

— Longa história, titia. — Pavetta disse. Passara a se dirigir à tia de Calendra daquela forma depois de meses frequentando sua casa. Parecia tão natural que Marion não se importara. — E aposto dez pratas que você está perguntando apenas por educação. Não é possível que não tenha nos ouvido falar sobre o assunto.

Tia Marion sorriu levemente.

— Não gosto de bisbilhotar a vida dos meus sobrinhos, eles geralmente ficam bravos comigo. Não é, queridos? — Lançou-lhes um olhar travesso; em seguida, uma piscadela. É claro que insinuava que os próprios sobrinhos fizeram o mesmo no passado, quando tentavam descobrir o conteúdo de suas reuniões secretas com a embaixatriz, Ravenna. Ambos apenas sorriram sem graça para a tia, que seguiu a conversa: — Mas se tem algo que realmente me deixa curiosa é aquele mapa que vocês carregam para cima e para baixo. É uma representação de Vaugalath? Ou de outra região?

— Ele mostra Vaugalath, sim. — Calendra revelou. — Mas não se limita ao vilarejo. O mapa abrange todo o território de Nurim Juraruinm-dê e vai além, para uma região a Leste denominada Keltiar. Quando me encontrei com Elysium, ele disse que descende desse povo e pretende chegar até lá em busca de respostas. Por isso que o convidei a vir aqui em casa, pois precisamos conversar, mostrar a ele que estamos em posse do mapa.

— Hum... que interessante. E como o arranjaram?

— Foi um presente de Nimbas, titia. Ele mencionou que lhe conhecia, lembra-se? Mandou-lhe saudações e tudo o mais.

Ao contrário do que esperava, sua tia empalideceu.

— Nimbas me mandou saudações? Não lembro de você ter comentado sobre isso comigo, meu bem.

— Como não? Eu falei que... oh, espere. Acho que tem razão, eu acabei me esquecendo de contar sobre o nosso encontro. É que foi logo antes do dia em que Ravenna esteve aqui em casa pela última vez, e depois Adilah e os meninos foram levados e...

— Titia, por que essa cara? — Rohden murmurou logo em frente à Marion, interrompendo a tagarelice da irmã. Como estava bem próximo da tia, vira o momento em que ela começara a se remexer na cadeira, parecendo desconfortável.

— Nada. — Ela respondeu. — Quero dizer, não sabia que vocês haviam conhecido Nimbas, a raposa. Fazia anos que eu não o via e pensei que tivesse partido de volta para seu reino.

— Na verdade, Rohden não o conheceu. — Disse Pavetta. — Apenas Calendra, Aspen e eu, quando visitamos Sooúl.

— Oh, aquela velha maluca? Ainda é viva?

— Sim... — Calendra falou, arrastando a palavra. Sentia-a estranha, evasiva, parecendo querer desviar o foco da conversa. — Como mesmo você os conheceu, titia? Nunca nos contou isso.

Ela abanou a mão no ar, bufando.

— Ah, como disse Pavetta, é uma longa história. Na verdade, não há nada de mais nela, se querem mesmo saber.

— Então, não haveria problema em nos contar, haveria? — Calendra insistiu, exigente. Conhecia sua tia bem demais e poderia dizer, sem sombra de dúvidas, que ela escondia algo. Porém, antes que Marion pudesse formular uma resposta, ouviram alguém bater na porta da frente, o barulho ecoando estrondoso naquele silêncio.

— Eu atendo! — Exclamou tia Marion, apressando-se para chegar à sala e atender a porta. Ouviram-na dizer: Olá, pois não? Você seria o convidado que Calendra está esperando? E foram logo arrastando cadeiras e empurrando uns aos outros a fim de chegar mais rápido ao cômodo principal da casa, quando tiveram uma surpresa.

Mesmo Calendra, que estivera com Elysium durante a manhã, teve de se conter para não abrir a boca em completo choque. Definitivamente, não era o mesmo sujeito que encontrara antes. O que fora de maltrapilho e descuidado estava de limpo e arrumado. Seu cabelo fora cortado mais curto, apenas uma mexa retardatária teimando em cair na frente do olho direito; e a barba ruiva, aparada a ponto de delinear o queixo robusto, dava-lhe uma aparência completamente diferente daquela que havia sido. Ele estava banhado, fios penteados e com uma roupa apresentável, a camisa e a calça puídas substituídas por outras elegantes. Sua altura pareceu-lhe atenuada pela primeira vez devido aos traços de sua fisionomia estarem mais aparentes, e se poderia dizer que se tratava de um homem atraente, com seus olhos azuis sagazes e sua boca de lábio superior levemente curvado, de ar inteligente.

Elysium parecia desconfortável por ter tantos pares de olhos mirando-no fixamente, boquiabertos. Apressou-se em adentrar no interior da casa e despir-se do casaco, o qual tia Marion tratou logo de pendurar no cabideiro ao lado da porta.

Rohden, sempre o mais receptivo, tomou a dianteira, estendendo-lhe os braços no cumprimento típico de Vaugalath.

— Seja bem-vindo à nossa casa, Elysium. Calendra contou-nos a seu respeito e esperamos poder ajudá-lo em sua busca.

Para surpresa geral, à exceção de Calendra, Elysium pegou os braços de Rohden e o cumprimentou com gosto, sabendo exatamente como se comportar de acordo aos costumes vaugalenos. Ela ficou um pouco receosa por saber que haviam cortes recém abertos em seus antebraços; porém, ele não demonstrou sinais de sentir dor alguma.

— Fico muito contente por enfim conhecê-los! — Disse ele. — Sou Elysium, do povo nômade. Como se chamam os senhores?

E, assim, começaram as acaloradas apresentações. Elysium, aparentando genuíno deleite pela recepção, foi rapidamente envolvido pelas pessoas da casa, que o convidaram a se sentar no sofá e a provar um pouco de chá com biscoitos frescos e bolo de mel.

Formaram um círculo à volta dele, como havia sido quando os estrangeiros aportaram pela primeira vez, começando a questioná-lo com tudo que lhes viesse à mente. Como eram as criaturas da raça híbrida? Como descobrira a magia? Havia quanto tempo chegara a Vaugalath? O que achara da vila? Por quanto tempo pretendia permanecer? Quais pistas possuía sobre Keltiar?

Elysium nem sempre tinha as respostas para as perguntas, a exemplo de quanto tempo pretendia ficar em Vaugalath — na verdade, ele vivia fora dos muros, próximo ao local que mostrara para Calendra naquela manhã. A respeito das pistas que possuía sobre a terra de Keltiar, também não eram muitas. Elysium revelara que os seus encontros com Vaughn serviram para que ele fizesse um panorama geral da geografia de Vaugalath, possibilitando-o dar a volta pelo perímetro dos muros e enfim encontrar a passagem secreta — àquela altura, conhecera Nimbas, que lhe mostrara o caminho. Ele não estava autorizado a revelar como Vaughn saía do vilarejo, nem por onde, apesar de muita insistência de Aspen, mas poderia dizer que se tratava de um sujeito honesto e sensível, que lhe ajudara em diversos momentos de necessidade, inclusive naquela tarde mesmo, quando precisara se preparar para encontrá-los.

— Vaughn também é um curioso, como vocês bem sabem. — Ia dizendo Elysium enquanto bebericava de sua xícara de chá, a mão se esticando para alcançar mais um biscoito de polvilho sobre a mesinha de centro. — Quando vim com a proposta de que, quem sabe, procurássemos a terra mágica de Keltiar, ele nem sequer hesitou. Partimos imediatamente, passando longos ciclos lunares fora, explorando os territórios de Nurim Juraruinm-dê. Não se enganem ao pensar que se trata de uma tarefa fácil. Aquela floresta pode até ser habitada, mas é selvagem em sua essência. Se eu não tivesse um termo escrito a punho pela própria Rainha, não acredito que teríamos sobrevivido muito tempo por lá.

— Você conheceu a monarca dos Reinos Antigos? — Rohden exclamou, perplexo. Estava sentado em uma almofada disposta sobre o tapete, as pernas cruzadas na posição borboleta e os cotovelos pousados nos joelhos. Aparentava tamanha animação que o corpo se balançava como um pêndulo, inquieto. — Como ela é?

Elysium crispou os lábios, parecendo pensar.

— Linda. Perspicaz. Terrível. Digna de ser uma rainha das fadas, eu suponho. — Ele deu de ombros, beliscando o biscoito. — Na verdade, tivemos apenas uma audiência formal, na qual o termo foi assinado. Na maior parte do tempo, negociei minha estada nos Reinos Antigos com os cortesãos de Sua Majestade. Contatei-os com a proposta de fornecer informações valiosas sobre os acontecimentos externos — pois, como sabem, viajei muito e isso fez de mim uma pessoa muito bem esclarecida — e, finalmente, depois de algumas negociações, chegamos a um acordo. A Rainha me permitiria explorar os seus reinos desde que lhe prestasse informes sobre tudo o que viesse a descobrir, não apenas acerca da política externa como, também, acerca das minhas descobertas pessoais.

— Isso me parece um acordo um tanto drástico e desproporcional. — Marion murmurou de seu lugar à poltrona.

— Sim, certamente o é. — Elysium respondeu. — Mas esse era o único modo de conseguir o que eu desejava.

— E descobriu alguma coisa? — Pavetta inquiriu.

— Esta que é a parte interessante! Descobri que os relatos e lendas que ouvi nos vilarejos próximos a Nurim Juraruinm-dê estavam certos, não apenas por se referir aos Reinos Antigos ou a Vaugalath. Realmente existe um lugar a Leste da floresta, ao qual nem mesmo a Rainha tem acesso, que supomos ser Keltiar. Quando fiz minhas pesquisas, tomei conhecimento de que um povo tão antigo quanto os da floresta possui domínio de uma região cercada pelas brumas. Qualquer viajante que ultrapasse seu território será engolfado e automaticamente levado às Cortes, não ao caminho que realmente deseja, percebem? Não sei como é possível um encantamento de tal magnitude, mas tenho para mim que a Rainha me esconde suas verdadeiras relações com Keltiar.

— Keltiar ficaria então na região depois do despenhadeiro? — Aspen perguntou, atraindo o olhar interrogativo de Elysium.

— Hipoteticamente, sim. — Retorquiu. — Mas nenhum de nós, refiro-me a mim e a Vaughn, tem certeza disso. Como soube?

Aspen sorriu, encabulado.

— Desculpe, sou eu quem está ajudando Vaughn a pintar o mapa de Vaugalath e arredores. Ele me disse que o despenhadeiro parece ser o limite dos Reinos; abaixo, há somente brumas.

Elysium assentiu.

— Estivemos nessa região que você mencionou e encontramos o despenhadeiro. É uma parede de pedra gigantesca que desce infinitamente. O máximo que conseguimos encontrar foi um caminho estreito que leva um pouco mais para baixo, entretanto é interrompido por um matagal de raízes grossas. Não se pode atravessar pelo lado porque a queda é certa e, por mais que tentássemos, não fomos capazes de arrancar aquelas plantas todas. Nutro esperanças de que aquela trilha possa nos guiar ao fim do despenhadeiro.

— O que você espera fazer quando chegar lá? — Calendra quis saber, olhando-o fixamente. — Se forem corretas essas lendas, as brumas os levarão imediatamente às Cortes.

— Verdade, mas com minha aliança com a Rainha, espero unicamente poder lhe relatar o ocorrido e tentar outra vez.

— É isso, então? Tentará eternamente, sem descanso?

— Enquanto houver força em minhas pernas, sim.

— E se não existir nada lá?

— Alguma coisa deve existir. Senão a Rainha não teria feito um acordo comigo, nem assinado documento algum. Ela também possui interesse nas minhas descobertas.

— Mas e se não existir? O que vai fazer? — Calendra insistiu, o que atraiu automaticamente a atenção dos demais. Pavetta e Rohden a olhavam, parecendo compreender aonde queria chegar, mas Aspen apenas franzia o cenho, aguardando.

Elysium suspirou lenta e profundamente.

— Receio que deva continuar procurando. — Disse enfim.

— Onde?

— Em qualquer lugar. A esta altura, estou desesperado. — Sua afirmação, muito embora indicasse uma vontade ferrenha, nutria um ar de esgotamento, como se ele estivesse exaurido pela busca aos quatro cantos do mundo, sem nada encontrar.

Ainda bem que você tem a mim, ouviu-se uma voz sussurrar. Era o inconfundível sonido da raposa, que assomara às suas mentes de repente. Todos se viraram na tentativa de identificar de onde vinha Nimbas, mas não o encontraram em lugar algum. Uma risadinha o assaltou, e então referiu: Não tenho culpa se vocês falam tão alto. Qualquer um com boa audição, a algumas milhas de distância, ouviria-os bem.

— E onde você está? — Indagou Calendra.

Em algum lugar aqui fora. Encontre-me.

Revirando os olhos impacientemente, Calendra estava prestes a exigir que parasse com as gracinhas quando Pavetta se ergueu do sofá, apontando um lugar ao longe através da janela aberta.

— Vejam! Não é Nimbas bem ali?

Correram para a ventana, analisando os arredores. O dia se encontrava fresco e ensolarado, iluminando o solo do bosque com as cores mais vívidas da primavera. A uma distância razoável deles, um urzal de ramos cinzentos e flores vermelho-violáceas crescia em abundância ao longo da terra fértil. Detrás das folhas, identificaram uma pequenina forma alaranjada, o focinho apontando para fora e os olhos os mirando fixamente. Nimbas seguia em uma posição tal que Calendra dificilmente o teria visto não fosse por Pavetta. Como a amiga tinha uma sensibilidade aguçada em relação aos animais, supôs que aquilo fizera com que pudesse avistá-lo mais facilmente.

Acha mesmo que sou eu? Perguntou a raposa.

— Reconheço-o, senhor raposa. — Pavetta afirmou, os punhos firmemente apoiados nos quadris. — Tenho certeza de que se trata do senhor. Na verdade, o havia sentido há mais tempo.

É mesmo? E eu achando que os estava enganando...

— Quase a todos. — Resmungou Aspen.

— Por que não sai daí e se junta a nós? — Calendra falou.

Nimbas não respondeu. Ao invés disso, languidamente esticou-se e atravessou o urzal com passadas delicadas, esfregando-se nas raízes das árvores no intuito de remover os espinhos que ficaram presos no pelo. Sua cauda se balançava atrás do corpo, um chumaço alaranjado que se armava até a extremidade branca. Veio então ao encontro da residência, cuja porta estava aberta à sua espera.

Ao adentrar no recinto, mirou os arredores, indo direto ao ponto:

Suponho que não haja realmente uma visão sobre a coruja orelhuda.

— Eh... não. — Disse Calendra. — Nós queríamos apenas atraí-lo até aqui, mas não sabíamos como.

Talvez um simples "venha nos fazer uma visita" bastasse. Ele andou pela sala, seus pelos roçando levemente as canelas de alguns ao passar. De qualquer forma, eu havia adivinhado as suas reais intenções.

— É mesmo? Como? — Quis saber Pavetta.

Muito simples: pelo fato de Elysium estar aqui. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele encontraria Calendra, por isso resolvi mover meus galhinhos a fim de adiantar um pouco aquilo que seria inevitável. Era imprescindível que ambos sentissem um ao outro, somente assim confiariam em suas intenções. Nem eu nem Sooúl gostamos de interferir tão abertamente no destino, mas, às vezes, se torna necessário tomar medidas mais drásticas. Quis aproveitar que estamos em lua nova para não perdermos mais tempo. Ele fez uma pequena pausa, seus olhos mirando um lugar logo atrás do grupo reunido ao seu redor. A propósito, saudações, Marion. Faz muito tempo que não a vejo. Você está ainda mais bela do que me recordava.

Todos se viraram a tempo de ver Marion engolir em seco. Sua tia, que estivera todo o tempo grudada à poltrona sem se mover, silente e observadora, acenou com a cabeça em um cumprimento, suas mãos rígidas sobre o colo.

— Saudações, Nimbas. Não posso dizer que esperava vê-lo novamente, mas é sempre um prazer estar em sua companhia.

Obrigado. E este rapaz que está aqui é seu outro sobrinho?

— Sim, é meu sobrinho mais velho, Rohden.

— Saudações, senhor Nimbas. — Disse seu irmão, fazendo a raposa mirá-lo fixamente pela primeira vez.

Saudações, meu caro. Como presumo que devam tê-lo informado previamente, eu sou Nimbas, do Reino de Vulpésia. Então, sentou-se sobre os flancos. É espantoso como você se parece com sua mãe, mas também com seu pai. Se o observo bem, consigo identificar traços de cada um deles em seu rosto.

— Conheceu meus pais? — Rohden perguntou, surpreso.

É claro. Só não tinha certeza de qual das duas irmãs era sua mãe, se a jovem e atrevida Marion ou a jovem e estonteante Lorena.

— Isso porque já se passou muito tempo. — Tia Marion se pronunciou de repente, o tom ríspido. Calendra a encarou sem entender por que tomava tal atitude se em nada combinava com seu gênio acolhedor e curioso, além de especialmente diplomático, deixando, ao invés, seus sentimentos totalmente à mostra.

De fato, a raposa cedeu, parecendo não perceber a hostilidade da anfitriã, ou, pelo menos, ignorando-a solenemente, o tempo que se passou foi longo, mas me lembro muito bem dele. Raposas têm boa memória.

— As pessoas também. — Contrapôs Marion.

— Titia, do que está falando? — Rohden perguntou, com o cenho franzido. Aquela era uma dúvida que pairava no ar, por certo a vontade de todos era querer saber o que se passava. Porém, em vez de responder ao sobrinho, Marion se ergueu, aproximando-se de Nimbas com lentidão. Com seus olhos flamejantes fixos na raposa, disse em um tom de voz controlado:

— O que veio fazer aqui? O que quer com meus sobrinhos?

A raposa não demonstrou nada além de indiferença.

Suas perguntas me deixam curioso. O que você supõe que eu tenha vindo fazer?

Aquela provocação pareceu acender algo dentro de Marion. Ela rangeu os dentes e fechou a expressão, olvidando-se de que se esforçava para demonstrar gentileza.

— Não comece com seus jogos de palavras! Se eu soubesse, por um instante sequer, que era você o responsável por isso — Ela indicou o espaço ao redor com a mão, referindo-se ao seu encontro com Elysium. —, nunca teria permitido essa loucura começar.

— Titia, o que deu em você? Por que está agindo assim? — Rohden insistiu, mas Calendra bufou, respondendo em seu nome:

— Não é óbvio? Eu devia saber que tinha um dedo seu nisso, titia. Será possível que esteja escondendo outro segredo de nós?

Receio informar que não há nenhum dedo de sua tia desta vez.

— Apenas seu, não é? — Marion vociferou, furiosa. Verdade seja dita, Calendra estava começando a se assustar com a reação tão ardente de sua tia. Havia um rancor em suas palavras, uma ira tal dirigida à raposa, que todos a percebiam claramente.

— Por favor, meus caros, não precisam discutir. — Elysium tentou apaziguar os ânimos, olhando receoso para Nimbas. — Seja o que for que tenha acontecido, estou certo de que poderá se resolver com um diálogo, mas nunca com gritos e acusações.

Marion riu com escárnio.

— Resolver, hein? Não acho que isso se possa resolver. Não é mesmo, Nimbas? Você acha que poderemos resolver isso na base do diálogo? Isso fará alguma coisa para reparar o que foi feito?

A raposa balançou sua cabeça diminuta, as orelhas murchas pela primeira vez. A cauda estava enrolada à volta dos flancos.

Compreendo sua dor, mas creio que a esteja despejando no lugar errado.

— Não creio na mesma coisa.

O passado não pode ser remediado.

— Que passado? Titia, que passado? — Calendra inquiriu, em desespero. Sequer sabia o que pensar diante daquela situação. A tia não costumava agir daquela maneira, muito menos proferir palavras tão ácidas, mas lá estava ela, bufando com um ódio mal controlado.

Não é verdade, Marion? Insistiu a raposa, o olhar exigente. Que passado é esse que não revelou aos próprios sobrinhos? Com que direito deu a si mesma a liberdade de esconder-lhes a verdade?

— Não se atreva a me provocar! Isso não lhe diz respeito! — Urrou, o dedo em riste apontado para a raposa, sua postura rígida parecendo prestes a atacá-la. — E você ainda não respondeu à minha pergunta: o que quer com meus sobrinhos? Não ficou satisfeito com a primeira desgraça que nos trouxe? Quer ainda mais?

Com tantas acusações, até parece que sou mesmo responsável pelo ocorrido. Se bem me recordo, avisamos a vocês o que iria acontecer caso resolvessem alterar a ordem das coisas. Não podemos apressar o tempo, ou tomar para nós o destino que pertence a outro. Se era Calendra quem deveria passar por isso, sua irmã não deveria ter intercedido em seu nome. Não percebe que foi uma escolha dela?

— Nossa mãe? Mas o que... — Rohden começou, mas logo foi cortado pela tia, que ergueu uma mão e respondeu:

— E o que esperava que fizéssemos? Que ficássemos com os braços cruzados à espera de que o pior acontecesse? Lorena jamais permitiria que algo atingisse Calendra, não se estivesse a seu alcance evitar. Você sabia disso! Eu lhe implorei para não contar a ela, e o que você fez? Despejou em cima de minha irmã aquela maldita e odiosa profecia! Disse que Calendra seria infeliz, que sentiria o vazio de sua alma quebrada — seja lá o que isso signifique! Atirou-lhe o medo e o horror ao colo, como se ela pudesse lidar com isso! Como se... ah, minha querida irmã! — Marion caiu de joelhos a seus pés, a mão agarrada ao peito como se uma grande dor a tivesse tomado e não tivesse forças para controlá-la. Rohden automaticamente se pôs ao seu lado, o braço a cobrindo protetoramente. Quando a tia voltou a ergueu o rosto, este estava tomado de lágrimas. — Você tem razão, eu não tinha o direito de esconder a verdade deles, mas não pude lidar com isso. Não pude encarar minha sobrinha nos olhos e contar o que realmente aconteceu...

— Titia, chega! — Calendra gritou, sem poder suportar mais ver a agonia profunda no rosto de sua tia. Apressou-se na sua direção a fim de tomar suas mãos, querendo que ela parasse de soluçar, pois lhe causava uma sensação terrível. Ajudou-a a se levantar, sentindo-a trêmula sob seu tato. Assim que se certificou de que estaria segura, virou-se para Nimbas e disse: — Eu conheço minha tia muito bem e sei que não estaria desse modo se não tivesse uma boa razão. Eu quero saber qual é. Agora!

Rohden tocou-a levemente no braço.

Menine, estou preocupado. Titia não está nada bem. Eu acho que vou levá-la para o quarto.

— Não! — Marion bramiu, a voz rouca. Estava quase desfalecendo nos braços de Rohden, mas franzia o cenho em uma carranca decidida. — Não permitirei que a leve... também.

A raposa, que estivera em silêncio apenas observando o desenrolar dos acontecimentos, olhou fixamente nos olhos de Marion e, em um tom cheio de pesar, proferiu:

Minha querida amiga, como lamento sua perda. Você carregou a culpa da morte de sua irmã por todos esses anos, mantendo-se em silêncio na esperança de que, se não falasse sobre o assunto, afastá-lo-ia para longe. Isso não é verdade, e você sabe. Calendra possui um destino, e não há nada que possamos fazer para remediá-lo além de muni-la com as armas que estão ao nosso alcance. Você não vê? Mesmo depois de tantas tentativas suas para evitá-lo, ele bate à sua porta como um antigo pesadelo de filhote. Você não poderá mais fugir.

— Mas... — Marion suspirou, as pálpebras firmemente cerradas. Suas mãos abraçavam o próprio corpo, que era em grande parte apoiado pelo sobrinho. Um silêncio perturbador caiu sobre o aposento, o tempo parecendo se suspender enquanto acompanhavam de perto as suas reações. Ela tremia tanto que seus dentes batiam uns contra os outros, balançando a cabeça de um lado a outro. Insistia em negar o óbvio: não poderia mais esconder aquele segredo de ninguém, por mais que lhe doesse o coração. Finalmente, depois do que pareceu a eternidade, Marion virou o rosto para longe dos sobrinhos, murmurando: — Conte a eles.

A raposa pareceu aliviada.

Você está me dando sua permissão?

— Sim. — Mais um suspiro. — Não tenho forças para fazê-lo por mim mesma.

Tudo bem... por onde começo?

— Pelo começo estaria perfeito. — Resmungou Calendra, carrancuda.

Nimbas assentiu, sua expressão séria. Sugeriu que todos se sentassem, pois, com a exaltação, acabaram se levantando, alguns a meio metro de distância, parecendo querer dar privacidade à família. Vieram de volta e se ajeitaram em volta da sala, uma aura tensa cobrindo o ambiente. Marion estava escorada contra o espaldar do sofá, encarando o vazio. A raposa passou ao centro do cômodo e se aprumou, pigarreando levemente antes de pronunciar:

Eis a curiosa lenda dos Manãa-dê tá Galath...

Notas da autora:

Olá, lindezas do meu coração. Sentiram saudade? Eu senti!

Antes de tudo, queria perguntar se vocês repararam nas mudanças que eu andei fazendo em Ocultos. Viram a capa nova? Não tá LINDA DEMAIS? Caaara, quando eu vi aquela imagem alguma coisa gritou dentro de mim, kkk. Depois, não precisei fazer quase mais nada, pois ela fala por si.

Enfim, momento auto bajulação off... vamos ao que interessa.

Tenho uma notícia MARAVILHOSA para dar a vocês:

OCULTOS ESTÁ EM RETA FINAAAAAAAAAAAAL!

Vou adiantar que o número total de capítulos será 17, então faltam apenas 4 para acabar. Mas o mais legal é que 2 dos 4 estão concluídos, só não em ordem. Quais estão prontos: o cap. XIII, o cap. XV e o cap. XVI. Os capítulos XIV e XVII ainda estão em processo de escrita, e eu ando escrevendo tudo meio fora de ordem ultimamente. Vou escrever em um, depois no outro e assim vai. Então não prometo postagens tão regulares, pelo menos até chegarmos ao cap. XV.

Mesmo assim, é uma alegria finalmente ter a perspectiva de colocar um ponto final neste livro! E acho que vai ser mais cedo até do que eu imaginava...

Espero que tenham gostado das novidades! Nos vemos em breve!

E como dizem os vaugalenos,

Uach nama latre!

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