Yousef (2a parte) Cap. 13

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O objectivo era a transição da jihad no Afeganistão para uma jihad global. Os conceitos abundavam e misturavam-se num caldeirão que geraria a poção mágica que conferiria as linhas de orientação para a Al-Qaeda e para as próximas acções desta organização. Neste caldeirão entrava o conceito de jihad entendido como um combate contra todos os infiéis que ocupavam terras muçulmanas e todos aqueles que se opunham à imposição da Charia como forma única de jurisprudência no mundo árabe. O conceito de Charia, vulgarmente conhecido pela maioria no Ocidente puramente como uma lei islâmica de contornos no mínimo medievais, está muito para além dessa visão simplista. A intenção por trás do conceito prende-se com a necessidade dos muçulmanos de criarem uma escritura de aplicação vasta que fosse capaz não só de conter as regras fundamentais porque se rege a jurisprudência mas também de comandar um estilo de vida que concretizasse a vontade de Deus, Alá, por via da citação, estudo e interpretação dos escritos do Corão e da Sunnah - que contém as palavras e as práticas atribuídas ao Profeta ao longo da sua vida -, incluindo sucessivas fases de dúvida, resposta e consequente adaptação ao evoluir dos tempos. Deste modo, a Charia sofreu diversas evoluções em diferentes países árabes e, no caso de alguns, a sua evolução simplesmente cessou a partir de determinado momento histórico. Cada país seguiu predominantemente as ideias capitais de um ou outro teólogo ou jurista clássico com uma determinada visão do que deve ser a Charia em função do Corão e da Sunnah. Certos países acham inclusivamente que o modo como a Charia foi interpretada há mais de mil anos, poucos séculos após a morte de Maomé, é tão definitivo que questioná-lo é simplesmente um acto abominável, já que desvirtua a pureza da visão clássica que entendem ser a mais próxima da vontade divina. É neste contexto que se incluem os extremistas radicais. É neste contexto que se inclui, por exemplo, a jurisprudência na Arábia Saudita (que à altura deste livro demonstra já uma maior abertura à evolução das suas leis). Porém, noutros países, a Charia é fruto de constante questionamento e evolução não só ao longo do passado mas também nos dias de hoje, de modo a poder ser adaptada à evolução da humanidade. Em Marrocos, por exemplo, surgiram recentemente reinterpretações e reformas na lei islâmica levadas a cabo largamente por jovens e mulheres eruditos que contribuem para fazer evoluir o espectro teológico no país.

Ilustrando esta visão de constante evolução da Charia, diz-se que, certo dia, tendo Maomé enviado um seu fiel seguidor ao Iémen como governador, lhe perguntou como pensava ele julgar os assuntos mais complexos que lhe surgissem durante a viagem, ao que o governador respondeu que o faria sempre tendo por base o Corão. O Profeta perguntou-lhe então como faria ele se não encontrasse a resposta no Corão. O fiel seguidor respondeu que procuraria uma resposta na Sunnah. E se a resposta ao problema não se encontrasse também na Sunnah, o que faria o governador, quis saber o Profeta. Nesse caso julgaria tendo como base o meu próprio raciocínio, respondeu o governador, resposta que se diz ter deixado Maomé bastante feliz[1].

A luta de Yousef, do xeque Omar e de toda a nova organização, deveria ser principalmente direccionada para uma substituição de regimes e de estruturas de poder nos países muçulmanos de modo a devolver o império de outrora aos muçulmanos. Expulsar os infiéis que ocupavam os países islâmicos, tal como os soviéticos que ocupavam o Afeganistão, era de importância primordial. Aliás, este ingrediente de libertação da opressão invasora dos países e territórios ocupados muçulmanos era aquele que mais gerava atracção pelas acções de Bin Laden e dos seus correligionários em todo o mundo islâmico. Os egípcios que rodeavam Bin Laden, encabeçados por Ayman Al-Zawahiri pretendiam agora, uma vez chegada a altura de escolher novos palcos primordiais de acção, a transposição da luta e dos recursos empregados no Afeganistão, para o Egipto. No terceiro vértice deste triângulo de relações, que incluía Bin Laden e Zawahiri, estava o xeque Abdullah Azzam. O palestiniano Azzam e o egípcio Zawahiri tinham visões diferentes sobre qual deveria ser o futuro próximo do que viam como uma jihad global a caminho da Charia global e com esta discordância impunham uma firme decisão a Bin Laden, em favor de um ou de outro. O egípcio que sofrera duro período de cativeiro e tortura no seu país no seguimento do assassinato ao Presidente Anwar Al-Sadat e que guardava, desde os quinze anos, a recordação da execução de Sayid Qutb, estava disposto a levar a cabo planos nada convencionais para alcançar uma mudança de regime político no Egipto de modo a instituir a lei islâmica no país, ou seja, a Charia na forma que cria mais pura, aquela interpretada séculos após a morte de Maomé e que excluía, para começar, a democracia, o direito de voto para eleger um líder político. Mantinha formado o grupo Al-Jihad que operava no Egipto, de onde emanara o grupo de homens que havia levado a cabo o assassinato do Presidente egípcio Anwar al-Sadat a 6 de Outubro de 1981. No seu seguimento, Zawahiri havia sofrido uma sequência das mais traumáticas experiências que se podem sofrer em cativeiro. A punição de Zawahiri e de todos aqueles que o governo egípcio achou ter qualquer tipo de ligação ao atentado perpetrado contra Anwar al-Sadat resultou numa autêntica linha de montagem de homens impiedosos, alimentados nas cadeias com doses contínuas e intensas de dor e ódio contra o regime egípcio de então e também contra o Ocidente que acreditavam ser a força oculta manipuladora e dominadora de fundo. A tortura é dos mais poderosos instigadores de ódio que o homem jamais inventou e naquelas como noutras prisões devia ser terrível não só suportá-la como ouvir os gritos resultantes.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now