Regresso (1a parte) Cap. 4

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        O ex-campeão de boxe Luiz Gonzalez, mais conhecido como Furacão das Caraíbas, desfere uma série de socos contra um saco de areia com a velocidade e a potência de um campeão. O suor desliza pelo rosto e pela pele de ébano. Enverga luvas de boxe carmesim e calções dourados. O tronco nu exibe a solidez de pedra dos músculos. O ginásio onde treina é um amplo pavilhão com vários espaços e aparelhos especialmente idealizados para a prática do boxe. Ao centro existem dois ringues onde alguns pugilistas se desafiam e, nos espaços laterais, outros praticam e aperfeiçoam golpes em vários aparelhos. Afixadas nas paredes do pavilhão, em vários pontos, podem ler-se várias passagens do Alcorão e da Bíblia, cujo objectivo é demonstrar a equivalência de princípios fundamentais entre religiões, tanto mais que o dono do ginásio é cristão e a maioria dos pugilistas ali dentro é muçulmana. Os dizeres que ali se podem ler são os seguintes

Alcorão 22:77

Ó vós que credes! Curvai-vos e prosternai-vos e adorai a vosso Senhor, e fazei o bem, na esperança de serdes bem-aventurados.

Alcorão 11:118

E, se teu Senhor quisesse, haveria feito dos homens uma só comunidade. Mas eles não cessam de ser discrepantes.

Alcorão 22:12

Ele invoca, além de Allah, o que não o prejudica e o que não o beneficia. Esse é o profundo descaminho!

Alcorão 2:42

E não confundais o verdadeiro com o falso e não oculteis a verdade, enquanto sabeis.

Alcorão 4:32

E não aneleis aquilo por que Allah preferiu alguns de vós a outros. Há, para os homens, porção do que logram, e há, para as mulheres, porção do que logram. E pedi a Allah algo do Seu favor. Por certo, Allah, de todas as cousas, é Onisciente.

Alcorão 17:23

E teu Senhor decretou que não adoreis senão a Ele; e decretou benevolência para com os pais. Se um deles ou ambos atingem a velhice, junto de ti, não lhes digas: "Ufa!", nem os maltrates, e dize-lhes dito nobre.

Êxodo 20:7

Não usarás o nome do Senhor em vão, pois o Senhor não deixará de punir quem usar o Seu nome em vão. 

Êxodo 20:12

Honra o teu pai e a tua mãe, que os teus dias sejam longos na terra em que o Senhor teu Deus te deu.

Êxodo 20:16

Não levantarás falsos testemunhos contra o teu vizinho.

Êxodo 20:17

Não cobiçarás a casa do teu vizinho; não cobiçarás a mulher do teu vizinho, ou o seu servo, a sua serva, o seu boi ou o seu cavalo ou o que quer que pertença ao teu vizinho.

Êxodo 20:15

Não roubarás.

Êxodo 20:13

Não matarás.

Trata-se do ginásio que Luiz Gonzalez criou em Istambul e onde passou a treinar habitualmente desde que se mudou, cedendo aos anseios da esposa. Ali dispõe também de condições para o treino de jovens pugilistas que alimentam o sonho de se tornarem, algum dia, campeões, como a lenda viva colombiana que é Luiz Gonzalez, o Furacão das Caraíbas. Ao lado do campeão, sentado num comprido banco de madeira, está o seu treinador e amigo de longa data, Juan Alvarez, de fato de treino e toalha ao ombro. É um homem de aspecto bem conservado, dos seus sessenta anos, mulato, a calvície disfarçada pelo corte de cabelo rente ao escalpe e um bigode bem aparado que lhe dá uma postura de um Eddie Murphy na casa dos sessenta. Enfiado no fato de treino, observa atenta e pensativamente o seu pupilo.

– Luiz, Luiz! – grita, de súbito, um homem do cimo de umas escadas, brandindo um telemóvel na mão.

O Furacão está por demais concentrado e desfere agora uma sucessão de socos velozes à altura da cabeça, fazendo oscilar a tal velocidade um pequeno saco vermelho que, deste, só se vislumbra o seu vulto no ar em determinadas posições. Entretanto, a sua mente corre solta, como um búfalo numa pradaria. Debate-se contra um adversário sem corpo nem forma que, mais tarde ou mais cedo, todos os desportistas enfrentam: a retirada. Há sempre um momento certo para a retirada ou, da mesma forma que se pode passar ao lado de uma grande carreira, pode-se arriscar a ser humilhado e a destruir uma imagem arduamente construída ao longo dos anos. O único problema é o modo como Luiz encara o futuro, uma vez afastado dos ringues. Nunca soube fazer mais nada. Nunca teve hipóteses para isso. Desde criança foi obrigado a lutar contra a dureza da vida e respondeu assumindo a luta como ninguém. O seu treinador costumava repetir-lhe que os rios correm mais rápido sempre que o leito estreita, tentando dificultar-lhes a passagem e também Luiz devia ser como um rio, servindo-se das dificuldades da vida para se fortalecer e correr mais rápido. Ser como um rio, aliás, sempre havia sido uma pedra basilar da sua brilhante carreira.

– Luiz! – É Juan Alvarez quem tem de o puxar de volta à Terra, no seu castelhano de sotaque colombiano, aproximando-se e tocando o pupilo. – Estão a chamar-te lá de cima, do escritório. Telefone!

– O que é? Já lhes disse que não queria ser incomodado!

– Que se passa contigo? É o bichinho da retirada, não é?

Luiz desaperta as luvas que lhe cobrem as mãos com o auxílio dos dentes e corre pelas escadas acima para o escritório. Juan Alvarez ergue os olhos para o céu e murmura para Deus:

– Senhor, se ele continua assim vai acabar com os ossos todos partidos no combate de hoje à noite, um por um.

Enquanto isso, Luiz já galgou as escadas que conduzem ao escritório e tomou o telefone móvel das mãos do jovem que o segurava. Do outro lado da linha, apresenta-se um inspector de polícia, o portador de más notícias de circunstância.

– Senhor Luiz Gonzalez, lamento informá-lo que a sua esposa acaba de ser sequestrada.

– Sequestrada? Onde? Quando?

– Na Praça Taksim, à porta do Taksim Square Hotel, há cerca de um quarto de hora. Ainda não temos mais pormenores, apenas sabemos que um automóvel preto parou em frente ao hotel e...

O semblante do colombiano crispa-se. Tudo o que Luiz pensa é: será possível que o meu adversário tenha ido assim tão longe para me desestabilizar neste dia de combate? Se assim fosse, teria sido ele, Luiz Gonzalez, o próprio causador indirecto de toda aquela situação e de todo o sofrimento de Nefise. As palavras do polícia ao telefone dissolvem-se em nada no mar de preocupações que povoa a sua mente. Apenas uma frase solta volta a captar a sua atenção:

– É possível que peçam resgate. É este o seu número pessoal? Pode verificar se recebeu alguma chamada?

Luiz leva algum tempo a responder. O resgate é, apesar de tudo, um mal menor. Pagará o resgate o mais rápido possível e tudo terminará bem. Pressiona alguns botões no telemóvel.

– Senhor Gonzalez? – insiste o inspector.

– Sim, este é o meu número pessoal. Acabo de verificar. Não recebi qualquer telefonema. Vou já para aí.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now