Regresso (1a parte) Cap. 9

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10.32h

Nefise está agora coberta por uma burqa ao estilo afegão e nota-se que anda em passo lento, combalido. Está acompanhada por três homens, vestidos com túnicas brancas e respectivos lenços árabes cobrindo-lhes o cabelo. A burqa é de uma seda fina em tons de azul celeste e cobre-lhe o corpo da cabeça aos pés. As burqas têm a particularidade de ser a peça de vestuário árabe mais polémica. Associada, segundo os críticos mais ferozes, ao obscurantismo islâmico, esta peça de vestuário cobre completamente o rosto e os olhos através de uma fina rede pela qual a mulher vê os contornos ao mundo. É bom lembrar, neste ponto particular da história, que há relatos de mulheres ocidentais que afirmam sentir-se mais livres debaixo de uma destas túnicas femininas árabes (mesmo a própria burqa que esconde os olhos), alegando que este vestuário as liberta, na sua opinião, do eterno julgamento masculino da beleza que, dizem, nunca está ausente, no Ocidente, dos ambientes profissionais, desde a mais simples reunião a uma entrevista de trabalho. Livram-se assim de serem julgadas pelo tamanho dos seios, do rabo ou das gorduras. Porém, a discussão na Europa e, em particular, na Turquia, é tudo menos pacífica e a tendência actual parece ser no sentido de proibir o uso de todo e qualquer véu neste espaço geográfico. Em 1998, uma estudante turca foi banida da Universidade de Istambul devido ao uso do véu num estabelecimento de ensino. Em 2000, Nuray Bezirgan, uma outra estudante, foi condenada a seis meses de prisão por alegadamente "obstruir a educação dos outros". O seu crime foi usar um véu nos exames. Recentemente, em Fevereiro de 2008, o parlamento turco passou uma emenda à constituição, permitindo a utilização de véus nas universidades, na base de que muitas mulheres estariam a fugir à educação universitária por causa da proibição mas, poucos meses depois, em Junho, o Tribunal Constitucional da Turquia deu voz aos imensos protestos dos secularistas, retirando a emenda do parlamento com base na necessidade maior de secularização do Estado.

Três sequestradores acompanham Nefise à entrada para o Bazar: um ao seu lado, segurando-a, e dois outros, caminhando mais atrás, na retaguarda. Yousef calcula que os três estejam armados embora as armas não sejam visíveis. Quanto a Nefise, imagina-a por baixo da burqa que a cobre da cabeça aos pés, com o corpo e a aparência que lhe conhece mas sentindo-a assustada, aterrorizada.

Apesar dos constrangimentos das suas vestes, Nefise reconhece com clareza o labirinto gigante que constitui aquele gigantesco e enigmático mercado. São quatro mil lojas e mais de sessenta caminhos que se interceptam, outrora ruas que entretanto foram sendo progressivamente incorporadas no mercado. As paredes estão cobertas de vários tipos de roupas, tapetes, jóias, louças, couros, antiguidades e especiarias. Ali os inúmeros comerciantes estão treinados, pela rotina e pela circunstância, para diagnosticar o perfil de todos quantos por ali circulam: locais, turistas, ricos, pobres, remediados, avarentos, ladrões, etc... mas acima de tudo, clientes. Detectando qualquer estrangeiro – e não são poucos os que por ali passam – logo o abordam com um Come here, my friend. Mas também são versados noutras línguas que não o inglês e o turco e, por isso, são ali ouvidas com frequência palavras de acolhimento e aliciamento comercial em espanhol, francês e outras línguas mais. Muitos deles são genuinamente amigáveis já que lhes agrada quase tanto fazer negócio como trocar impressões com os estrangeiros. Alguns oferecem um çai – o chá da amizade – para tomar na sua loja, sem que se lhes compre nada ou até mesmo já depois da venda consumada, só pelo puro prazer de alguma conversa interessante e até porque segundo diz o Corão, "o estrangeiro é o enviado de Deus".

Mas retomemos a entrada de Nefise, vigiada de perto por três dos raptores e, mais atrás, Yousef, que a todos vigia. A burqa intimida mas, mesmo assim, não demora muito até que um primeiro comerciante os aborde, sendo simplesmente ignorado. Logo surge um segundo ao virar da esquina e um terceiro que, com um belo colar dourado numa das mãos toca Nefise para chamar a sua atenção. O árabe que a segura pelo braço afugenta o comerciante. Fá-lo com um gesto brusco com o mesmo braço que segurava Nefise. Ela, sentindo-se momentaneamente livre, vê uma janela de oportunidade e lança-se no labirinto.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now