Yousef (2a parte) Cap. 2

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Em Peshawar, cidade situada no Norte do Paquistão a escassos quilómetros da fronteira com o Afeganistão, Yousef passou a maior parte do tempo na Agência de Serviços, o quartel-general de Osama bin Laden e do xeque Abdullah Azzam para organizar e empreender a participação na jihad afegã. Era uma casa alugada na cidade universitária de Peshawar e o ponto de chegada obrigatório para qualquer árabe que respondesse à fatwa de Azzam, que determinava um envolvimento impreterível de todos os muçulmanos aptos na defesa do Afeganistão, povo irmão invadido e oprimido pelos infiéis ateus comunistas. A Agência servia de alojamento a vários candidatos a efectivos mujaedines e era sede dos esforços propagandistas e editoriais do movimento que ali se formava. Constituía assim uma singular mistura de hospedaria, registo de recém-chegados mujaedines e sede administrativa. Ali chegavam várias remessas de dinheiro angariado principalmente por Bin Laden (mas também por Azzam) para auxílio dos refugiados afegãos, frequentemente em malas generosamente recheadas de notas. Só o Governo saudita terá contribuído com valores entre trezentos e quinhentos milhões de dólares por ano. A maior parte do capital angariado permanecia, contudo, numa conta na Suíça, conta essa que era controlada pelo Governo norte-americano (como consta na obra A Torre do Desassossego, de Lawrence Wright, Casa das Letras, 2007).

Apesar de se mostrar ardentemente desejoso de participar nos combates em curso no Afeganistão, Yousef acabou relegado para tarefas de segunda linha que consistiam basicamente em fazer chegar os chorudos donativos angariados aos necessitados refugiados afegãos. A espaços, escrevia também para a revista do movimento. Ofereceram-lhe albergue nos subúrbios de Peshawar, onde partilhou casa com outros jovens recém-chegados recrutados de forma semelhante à sua. O seu dia-a-dia era preenchido entre a Agência de Serviços, hospitais, o alojamento nos subúrbios, ocasionais mas raras conversas com companheiros de movimento e as confusas ruas de Peshawar onde camiões, automóveis, peões, bicicletas, cavalos e burros confluíam num trânsito caótico. Todo este ambiente mergulhava-o cada vez mais na noção de estar a perder o seu tempo numa cidade que vivia fervorosamente a jihad afegã, mas sempre à distância, como se Peshawar fosse a primeira caverna na distância onde ecoavam os gritos de guerra mas onde nunca havia a mínima perspectiva de estar presencialmente nela e, para Yousef, só no palco de guerra se podia realmente fazer história e lutar pelo futuro do Afeganistão e do mundo muçulmano. Assim, a realidade de Peshawar estava longe de o saciar e começava mesmo, com frequência, a irritá-lo. Parecia-lhe que, apesar de ter viajado tantos quilómetros até ao Paquistão, ainda estava deveras longe do que era realmente importante, tal e qual como acontecia antes, em Djeda, onde assistia a tudo apenas pela televisão. O único benefício que sentia agora era o de saber-se próximo da fronteira com o Afeganistão assim como também o de poder prestar auxílio directo aos carentes refugiados afegãos. Via neles, nos seus rostos e corpos vergastados de insuportáveis dores físicas e psicológicas, os terríveis danos humanos causados pela guerra. Trabalhava no dia-a-dia para aliviar este sofrimento e esta ocupação redobrava tanto a sua ansiedade como gerava irritação por não ter autorização para actuar onde via a raíz do problema: o palco de guerra. Do seu ponto de vista, a única forma de mudar aquele estado de coisas era vencer a guerra e o mais rápido possível. Não entendia como podiam prescindir de alguém como ele desejoso de lutar. Na Agência de Serviços, ouvia falar de planos e movimentações. Apreciava as conversas, o constante entrar e sair. Prometeu a si próprio estar atento e aproveitar todas as oportunidades que surgissem para atravessar a fronteira que, apesar de tudo, estava ali tão próxima.

Ao fim de alguns meses em Peshawar, Yousef recebeu ordem para se encontrar com um homem misterioso de quem já muito ouvira falar e que conhecia de vista. Sabia tratar-se de um xeque saudita nascido em Medina e proveniente de uma família muito abastada e próxima da família real, idade em torno dos quarenta, conhecido pelas suas convicções férreas e perfeitamente alinhadas com as de Bin Laden. Era um homem merecedor de inteira confiança que se dizia estar sempre a par de tudo o que se passava na Agência de Serviços e em torno dos intentos do grupo. Conhecia bem Bin Laden e o xeque Azzam e havia colocado uma avultada porção da sua fortuna nas mãos destes dois homens, ao dispor para a jihad afegã. Era conhecido apenas como xeque Omar e o seu nome completo era Omar Rasoul Sharif.

Yousef apressou-se a ir ter com o xeque Omar, tal como lhe foi indicado, numa vivenda nos arredores de Peshawar. Encontraram-se num escritório sobriamente mobilado, o xeque sentado atrás de uma escrivaninha de mogno muito ampla mas praticamente vazia. Mais não havia sobre ela do que um candeeiro e um exemplar do Corão, ambos empurrados para uma das extremidades. Da janela soprava uma brisa amena que fazia erguer ocasionalmente as cortinas finas e a luz do dia penetrava coada, através delas, preenchendo o escritório com uma tímida luminosidade. Havia estantes cheias de livros antigos e uma ventoinha girando no tecto. A decoração era bastante pobre, principalmente tendo em conta tudo aquilo que Yousef já ouvira em relação ao pecúlio do xeque Omar.

Yousef sentou-se numa cadeira em frente ao xeque e ouviu-o respeitosamente. O xeque envergava uma túnica branca comprida e um lenço axadrezado sobre a cabeça e ia dirigindo a conversa, sempre de forma segura, ocasionalmente elevando o dedo para explicar ou enfatizar algum pormenor. O xeque prezava quem o soubesse escutar e Yousef gostava de ouvir, especialmente quem lhe falasse aberta e apaixonadamente da jihad no Afeganistão, da necessidade de expulsar todos os exércitos infiéis das terras árabes ou da importância de criar um novo califado islâmico glorioso e foi com este tipo de discurso preliminar que o xeque iniciou a conversa. Estavam geradas as condições para uma imediata empatia. Ambos eram devotos aos mesmos princípios políticos básicos e precisavam um do outro em igual medida, um porque precisava de um homem de confiança jovem e enérgico ao seu lado, o outro porque precisava de um guia importante dentro daquela organização, alguém que o pudesse levar a ser mais efectivo dentro dela e lhe pudesse conferir a tão ansiada autorização para ir até ao outro lado da fronteira.

– Tenho recebido informações tuas, rapaz. Sei que tens ambição de entrar na guerra – afirmou o xeque Omar, olhando Yousef firmemente nos olhos.

– Sim, foi para isso que vim para cá, para combater do lado dos muçulmanos.

– Já vi muitos que diziam o mesmo até se encontrarem em real situação de guerra.

– Confio que saberei lidar perfeitamente com isso quando o momento chegar.

– Pois bem, se te revelares merecedor, partirás dentro de um mês para o Afeganistão, tal como desejas. Para tal apenas precisas de passar algum tempo comigo e cumprir as tarefas que te irei dando. Se a minha avaliação for positiva, partirás. Estás a entender?

Era tudo o que Yousef mais desejava ouvir. Passou os dias seguintes por inteiro com o xeque Omar, auxiliando-o e acompanhando-o em todas as suas tarefas do dia-a-dia como se a sua própria vida dependesse disso. Mostrou-se obediente, confiável, inteligente, corajoso e empenhado e, em pouco tempo, tomou o seu lugar como efectivo mujaedine a caminho da guerra no Afeganistão.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now