Yousef (2a parte) Cap. 17

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Lá dentro, a decoração era sóbria e a luz que penetrava escassa, o que ajudava a manter o espaço fresco. Mesas baixas, potes altos decorativos e dois largos sofás preenchiam a parte acolhedora do piso inferior, uma espécie de sala de visitas logo a seguir à entrada. Os vários pisos superiores estavam organizados por semi-patamares adjacentes à escadaria.

- Deus é grande - cumprimentou Yousef, após divisar a figura de um homem sentado numa poltrona, a cara obscurecida pela penumbra. Ao cumprimento de Yousef, o rosto saiu da penumbra. Era um rosto moreno, queimado e cansado, contudo o conjunto de um bigode bem aparado, um lenço de feitios vermelhos e brancos na cabeça e uma longa túnica branca que lhe caía até às sandálias, davam um ar erudito e bem-parecido àquele homem de meia-idade. Foi Yousef quem teve de voltar a falar mediante o silêncio prolongado do seu interlocutor. Indicou o seu nome e invocou o do xeque Omar. Ao ouvi-lo o semblante do homem descomprimiu. Yousef ia prosseguir mas foi subitamente interrompido com um gesto do homem e um conjunto de inesperadas palavras:

- Maghrib. É hora do Maghrib.

- Bem sei. Aproxima-se a oração. Voltarei numa hora mais conveniente - disse Yousef, muito respeitoso. - Peço que me desculpe mas acabo de regressar à nossa cidade e pensei imediatamente em o procurar, tal como me foi indicado...

- Senta-te meu rapaz. Haverá tempo suficiente. Aliás julgo que não tenho muito tempo a perder contigo - Yousef voltou a sentar-se. - Além disso a mesquita é aqui perto. Alguém te viu entrar? Não? Tens a certeza? Melhor.

Yousef sentou-se num sofá mesmo por baixo de um espelho de moldura dourada. O aparente dono da casa chamou pelo criado que se mantinha solene e atento de pé no limiar da sala e, tendo-se ele aproximado, segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Este subiu os degraus para o andar superior por trás do patrão e desapareceu.

- Estiveste então no Afeganistão nestes últimos anos?

- Sim.

- E os mujaedines estão mesmo a ganhar a guerra aos soviéticos?

- Sim, já ganhamos. Com a bênção de Deus.

- Sim. E o sangue dos homens.

- Sem dúvida. Esse é o preço. Assim é a guerra.

- Tu estarias realmente disposto a suportar o martírio se tivesses sido posto à prova?

- Eu fui posto à prova.

- Mataste algum kafr?

- Kafrs e afegãos leais ao Governo Comunista.

- Destroça o coração ter que matar muçulmanos para libertar o país da opressão comunista. Diz-me o xeque Omar que lhe salvaste a vida quando ficou ferido em pleno palco de batalha e que os soviéticos estiveram inclusivamente muito próximos de conseguir matar Bin Laden.

- Assim foi.

- Não és muito falador, pois não?

- Confio que sou melhor guerreiro.

- Pois creio que terás de ser também falador para alcançar sucesso no que te espera.

Yousef ficou sem entender bem aquelas palavras. O criado chegou com um tabuleiro com um bule de chá, dois copos rasos, e uma caixa rectangular, alta e de contornos dourados, sensivelmente com o volume de uma caixa de sapatos.

- Felizmente que aqui a cozinha ainda funciona e ainda há chá, Deus seja louvado! Pareces confuso, rapaz? Surpreendido? Claro que não moro aqui, o que é que me julgas? Aqui já ninguém mais quer morar depois do fabuloso advento do petróleo. Quem pode troca a sua casa na cidade velha por uma na parte nova que não pára de crescer do lado de fora das muralhas. Esta casa é propriedade de um pobre coitado que ma emprestou para este nosso encontro e que, por sinal, já deve estar na mesquita a esta hora para o maghrib - depois olhou para o criado e disse-lhe: - Deixa-nos a sós.

O criado assim fez e saiu para a rua.

- É um bom criado. Tanto mais que a cozinha nestas casas é no último piso! - Dito isto, o homem soltou uma gargalhada que Yousef não retribuiu, mais por indiferença, do que por qualquer tipo de antipatia. - Bom, agora ao que te traz aqui, rapaz. Presta atenção. Serei breve. Irás para Londres tirar um curso de Engenharia Electrotécnica. O teu nome a partir de agora é Fahrouk. Tens nesta caixa um bilhete de avião e um conjunto de cartões bancários que te dão acesso a mais dinheiro do que certamente ganharias numa vida inteira. Assim que saias desta porta poderás aceder a ele em qualquer banco. Escusado será dizer quem supervisiona essa conta. Dizem-me que saberás utilizar o dinheiro convenientemente, portanto, quanto a esse assunto fico-me por aqui, embora ache um desperdício colocar tanto nas mãos de um rapaz tão novo mas, cada um sabe de si e do seu dinheiro. Nesta mesma caixa há um papel com um nome e uma morada. Será o teu próximo contacto assim que chegues a Londres. Quando eu sair irás ao andar de cima trocar de roupa. É tudo.

- E qual é a minha missão em Londres?

- Isso ser-te-á dito lá. Isto e

- Então porque me disse que iria precisar de ser mais falador?

- Ora, porque te vais misturar com outras culturas em Inglaterra. E presumo que terás que te misturar o mais possível com os ocidentais para não atrair atenções desnecessárias mas isso já não é comigo. A minha missão é apenas entregar-te o que está dentro desta caixa e, essencialmente, assegurar que tens dinheiro, bilhete de viagem e que estás encaminhado para o teu próximo contacto no exterior. Espero que gostes da tua nova vida, rapaz! Agora, tenho de ir para a mesquita. Ah... e, claro, nunca mais me procures nem me abordes em caso algum. Nem sequer me dirijas o olhar se algum dia te voltares a cruzar comigo. Nunca nos encontramos, nunca nos conhecemos. Nem sequer estive aqui hoje.

Yousef viu-o erguer-se da poltrona e levantou-se também, respeitosamente. Pensou que estava tudo a ir depressa demais e que devia provavelmente perguntar mais qualquer coisa, procurar obter mais alguma informação. Mas o quê? Não lhe ocorria nada. Limitou-se a despedir-se respeitosamente enquanto aquele homem misterioso e certamente de classe alta na sociedade saudita se encaminhou para a porta e a bateu sem mais palavras deixando Yousef mergulhado na solidão daquela casa. Olhou à sua volta, bebeu o resto de chá no seu copo e depois subiu as escadas.

No andar de cima havia um aposento de dormir com uma cama e sobre ela um conjunto de roupas de tecidos caros, suaves e frescos que incluía calças e casaco de fato, camisa e gravata, ambas de seda pura, a camisa branca e a gravata carmim. Aos pés da cama estavam pousados uns sapatos pretos muito brilhantes. Na mesinha de cabeceira, havia um relógio e uma caneta, ambos dourados, ambos reluzentes. Yousef inspeccionou o quarto de banho ali ao lado, largou as roupas e tomou um bom duche. Relaxou sob o efeito da água tépida jorrando sobre o corpo nu. Em seguida vestiu, um por um, as roupas e acessórios que lhe haviam sido deixados e conferiu o seu aspecto num espelho muito alto, quase do tamanho dele, encostado a uma parede. Sentiu-se estranho naquelas roupas formais. Um guerreiro envergando roupas de homem de negócios afluente. Chamou-lhe a atenção a barba. Até aquele momento não tinha tido noção do tamanho que ela já havia alcançado. Aparou-a cuidadosamente com uma tesoura. Olhou-se de novo e, desta feita, demoradamente, ao espelho. Viu reflectido no vidro o que lhe pareceu uma espécie de magnata do petróleo. Estava transfigurado mas tinha total consciência de que tudo não passava de uma capa exterior. Aquele não era ele. Por dentro sentia-se o mesmo humilde e determinado mujaedine. Sobre a cama estavam agora as suas roupas antigas, sujas e gastas, com que havia chegado. Retirou delas unicamente a fotografia da irmã de Nasser que guardava sempre consigo e colocou-a no bolso de dentro do casaco novo. Desceu ao piso inferior e examinou os conteúdos da caixa de contornos dourados que lhe fora deixada. Lá dentro havia uma passagem aérea da Britisth Arways onde se lia, local de partida Jeddah e local de chegada London, com a respectiva data de partida para dentro de poucos dias. O bilhete estava emitido em nome de um tal Fahrouk. Dentro da caixa havia também um passaporte. Pegou nele e folheou-o. Era um passaporte marroquino e lá estava a nova identificação e a sua fotografia. O mesmo nome que figurava no bilhete de avião, Fahrouk, mais os respectivos apelidos que Yousef procurou decorar. Aquele era ele agora. E o resto? Inventaria o que fosse preciso. Permaneceria em Djeda apenas uns dias a julgar pela data de partida que via inscrita no bilhete de avião. As coisas precipitavam-se. Na caixa havia ainda uma bela carteira de couro recheada com vários cartões e algumas notas. Alguns dos cartões eram bancários, outros não, e Yousef não perdeu tempo a analisá-los a todos. Ainda se lembrou de retirar do bolso a fotografia da irmã de Nasser e colocá-la dentro da carteira nova. Em seguida guardou todos os conteúdos daquela caixa nos bolsos do casaco do novo fato e, finalmente, abandonou a casa.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now