Regresso (1a parte) Cap. 1

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REGRESSO

1

Istambul

28 de Setembro de 2008

08.30h da manhã

Nefise abre a janela para a majestosa cidade de Istambul e ajusta os recém-despertos olhos verdes, pouco a pouco, à imensidão da grande metrópole turca cheia de mistérios e histórias ocultas. Cidade de muitos nomes, outrora chamada de Constantinopla e grande bastião da cristandade no Oriente, também chamada antes disso, Bizâncio, pelos seus fundadores gregos de Mégara em 667 a.C., Istambul espraia-se, elegantemente, ao longo das duas margens, europeia e asiática, do Estreito de Bósforo, sendo a única cidade do mundo situada entre dois continentes. Situa-se, portanto, entre dois mundos, entre duas civilizações, entre duas religiões e entre duas concepções distintas do mundo. Por isso mesmo possui uma identidade muito própria, tal como a própria república turca, orgulhosa descendente do Império Otomano mas senhora de uma alquimia de características muito próprias.

Nefise vive na parte asiática e trabalha na parte europeia desta mítica cidade, tal como inúmeros outros habitantes. Professa, tal como 99% dos turcos, o Islão e é no mundo asiático de Istambul que se sente em casa. Mesmo os turcos que duvidam da sua fé acabam por se declarar islâmicos no seu bilhete de identidade já que, não o fazer, significa colocar desde cedo barreiras ao próprio futuro, numa Turquia laica mas esmagadoramente islâmica, onde as intensas pressões de ocidentalização iniciadas pelo regime republicano de Mustafá Kemal Atatürk após a queda do Império Otomano e a criação da nova República no início dos anos vinte, não evitam que a Turquia moderna conviva com a tradicional, ambas fortes, ambas numa busca de harmonia cada vez mais forte entre o Este e o Oeste do Mundo. Durante o seu trajecto de vida, Nefise já viveu o suficiente para compreender que o Alá de uns equivale ao Deus de outros e que os mais significativos ensinamentos da Bíblia e do Corão apontam na sua essência para um mesmo caminho de amor, fraternidade e tolerância pelo próximo. Tem, por isso, o mesmo sentimento de fraternidade por cristãos e muçulmanos, lado a lado com a sua moderada fé no Islão. Está longe de rezar cinco vezes ao dia como manda a tradição islâmica mas não lhe passa pela cabeça penitenciar-se por esse facto ou achar-se uma filha menor de Alá. Procura apenas frequentar assiduamente a Cuma Namazi, a Namaz de sexta-feira, que tem lugar, como o próprio nome indica, às sextas-feiras (que na semana islâmica equivalem aos domingos da semana cristã), sempre à uma e quinze da tarde, no interior de qualquer mesquita. É a sua única preocupação calendarizada para com o Islão. De resto, considera-se inteiramente livre perante a religião já que até mesmo essa visita à mesquita é facultativa em caso de força maior.

Preparada e arranjada, de alma renovada, vaidosa na sua feminilidade, Nefise mete-se no carro e embrenha-se nas ruas familiares de Istambul, de aromas e temperos exóticos. Há um tropel indomável de gente nas ruas e, como pano de fundo, o casario típico árabe de onde despontam belas mesquitas milenares com os seus típicos altos e imponentes minaretes de onde é feita a chamada para as cinco orações diárias. Atravessa a ponte suspensa sobre as águas mansas do histórico Bósforo e nem nota que há um carro preto que a persegue desde que saiu de casa. Alcançando o outro lado da cidade, mais gente, como formigas, umas correndo de um lado para o outro, outras paradas à espera de um autocarro, outras tantas já na sua labuta diária, os táxis acelerando e ziguezagueando pelas ruas e avenidas, temerários, como se tivessem asas. Como dar atenção a um carro que nos segue no meio deste trânsito frenético? As lojas vão abrindo, uma por uma, debaixo do sol ainda tímido e ameno da manhã, o cheiro das especiarias, das pessoas e dos escapes dos carros mistura-se e adensa-se no ar, poucas palavras são ditas porque o sono ainda pesa nas cabeças da maioria. Nefise aprecia tudo isto ao volante do seu carro, sempre em Istambul, mas da Ásia para Europa, até desembarcar na movimentada praça Taksim, no coração da metrópole.

Assim que deixa o espaço confinado do carro e começa a caminhar pela praça, Nefise saboreia o ar fresco que já anuncia o fim dos dias de intenso calor do Verão. Muito gostaria de continuar a apreciar tranquilamente a manhã mas deve deslocar-se ao Taksim Square Hotel para se encontrar com um agente literário italiano que lhe propôs uma reunião nessa manhã, às nove e meia. Faltam apenas alguns minutos e convém ser pontual. Por isso, Nefise não perde tempo e entra no edifício envidraçado à face da praça. No átrio de entrada, revestido do chão às paredes por mármores impessoais de tons alvos e rosados, é recebida por uma jovem recepcionista, aprumada e bonita no seu uniforme, que lhe fornece rapidamente a informação pretendida: o salão de pequenos-almoços situa-se no último piso. Nefise dá meia volta, avança para o elevador e pressiona o botão do oitavo andar. Enquanto o elevador ascende, pondera sobre a conversa que terá com o agente literário italiano com quem apenas trocou curtos e-mails. Um contido nervosismo atravessa-lhe o espírito; quer causar boa impressão. Avalia-se ao espelho e, de súbito, o elevador pára, cortando todos os pensamentos.

À entrada no salão de pequenos-almoços, Nefise é imediatamente atraída pela vista panorâmica sobre o Bósforo, exposta por trás de uma série de janelas envidraçadas que ocupam quase toda a parede do seu lado esquerdo, orientada para as traseiras do hotel. Àquela hora há pouca gente nas mesas. Do lado oposto da sala, sentado a uma mesa de canto, está um homem árabe, moreno e forte, aspecto entre trinta a quarenta anos, os cabelos grisalhos abundantes, rivalizando espaço entre os negros, a barba muito curta mas de aparo cuidado. Está elegantemente vestido com uma camisa branca e um fato azul-escuro, ambos de aspecto imaculado. O homem baixa apenas alguns centímetros o Sabah que lhe cobre o rosto, deixando alinhado o periódico turco justamente abaixo da sua linha de visão, de modo a permitir-lhe examinar a figura de Nefise enquanto ela se acomoda à mesa. Não consegue conter um doce suspiro. Está majestosa, mais bela ainda do que imaginara nos sonhos e devaneios dolorosos pelas estradas da memória. Imagens fortes do passado assolam o seu espírito mas ele afasta-as. Dobra o jornal e pousa-o em cima da toalha da mesa. Na página voltada para cima, um curto artigo narra a história de um cidadão alemão tomado erroneamente pelas autoridades norte-americanas por um conspirador terrorista quando, no mês de Outubro de 2001, decidiu frequentar uma escola corânica no Afeganistão, tendo sido transferido para a execrável prisão de Guantánamo onde suportou durante anos, interrogatórios, solitária e incontáveis humilhações - o nome deste prisioneiro é Murat Kurnaz e noticia-se agora a sua libertação. Esta notícia chamou a atenção do árabe enquanto tomava o pequeno-almoço no Taksim Square Hotel mas agora está já totalmente esquecida. É Nefise quem lhe atrai toda a massa cerebral. O árabe, de nome Yousef (o equivalente a José, Joseph ou Giuseppe noutros países), toma um derradeiro gole de café e lança um rápido olhar para o fundo da chávena, como quem joga cara ou coroa, malmequer ou bem-me-quer, à espera de uma palavra de Deus sobre o seu futuro. O resultado não é animador e, desencantado com o que lhe revela o resto de café turco depositado no fundo, Yousef desvia o olhar e larga a chávena. Em seguida, cerra as pálpebras procurando acalmar-se e conquistar maior auto-controlo. Pensa que não é turco e, portanto, o ritual turco de tentar prever o futuro através do café de nada lhe adiantará. Toma coragem, levanta-se e avança em direcção a Nefise. A decisão está tomada.

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now