Yousef (2a parte) Cap. 5

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Era incrível o sentimento de estar no centro dos acontecimentos! Era ali que se decidia o futuro do mundo islâmico! Aliás, pode-se mesmo arriscar dizer que era ali que se decidiria muito mais do que isso: o fim da guerra fria. O fim de uma era. Os apoios para derrotar o inimigo comunista choviam dos céus, principalmente da Arábia Saudita e dos E.U.A.. Havia até poderosos mísseis portáteis americanos a chegar, os Stinger, que causariam importantes perdas aos soviéticos. Todavia, no que dizia respeito ao conjunto dos chamados afegãos-árabes que, sob o comando de Bin Laden, sentiam estar a formar o primeiro exército comum árabe do mundo, um paralelo à NATO, nem seriam precisos mísseis Stinger já que bastavam os mujaedines, movidos por uma causa justa e força divina, para derrotar o inimigo. No fundo, tratava-se de lutar por toda a nação islâmica! Por todas estas razões, sentidas e pressentidas, a vontade era imensa, no seio daquele grupo de árabes de várias nações, de entrar na guerra pelo fim do Afeganistão comunista e pela ressurgência de um novo país que tivesse o Islão como religião, lei e governo, como era devido.

Será importante referir que decorria o ano de 1986 quando Yousef chegou ao acampamento de Jaji nas montanhas do Afeganistão que, por algum tipo de coincidência funesta ou não, foi designado o Ano da Paz pelas Nações Unidas. Nesse mesmo ano, a URSS, pela voz do supremo chefe de Estado, Mikhail Gorbachov, apresentou um calendário para a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão. Contudo, levaria ainda três anos a consumar-se essa retirada e, por conseguinte, a sarar aquilo a que o histórico líder soviético várias vezes apelidou nos seus discursos de uma ferida que sangra[1]. Em 1986, enquanto os americanos financiavam e apoiavam os inimigos militares da União Soviética no Afeganistão, o próprio Gorbachov propôs, em Janeiro, a eliminação do arsenal de armas nucleares de médio alcance dos dois países até ao ano 2000. Ronald Reagan soube responder ao desafio com igual destreza e ambição e, com alguma surpresa, meses depois, os dois chefes de estado concordaram em encurtar o prazo para dez anos, ou seja até 1996. Sabemos agora que estes planos idílicos não conduziram a parte alguma mas ter-se falado em tais intenções causou certamente grande impacto mediático na época mesmo que, muito provavelmente, nem sequer Reagan ou Gorbatchov algum dia tenham acreditado que fosse possível voltar a viver-se num mundo sem armas nucleares. À data em que este livro está a ser escrito, o mundo é constituído não apenas por duas únicas potências nucleares mas várias, sendo a próxima em vista o Irão. Se nos dermos ao trabalho de pesquisar uma lista dos principais acontecimentos do ano de 1986, ainda encontraremos dois outros relacionados com a União Soviética: o desastre nuclear de Chernobyl e o lançamento da Estação Espacial MIR. Este último leva a pensar que Mikhail Gorbachov talvez estivesse já farto dos problemas terráqueos, como a ferida do Afeganistão (que outros haviam deixado para ele sarar e que, outros ainda, se esforçavam por garantir que fosse mais dolorida do que a do Vietname para os americanos) e terá achado que, perante este estado de coisas, o melhor era mesmo concentrar esforços na sua Perestroika e na corrida ao espaço. Só o futuro nos dirá se as conquistas territoriais lunares serão realmente mais pacíficas do que as terrestres, quando os homens estiverem finalmente em condições de transpor as suas guerras para além dos confins da Terra. Mas Gorbatchov deixaria outras marcas profundas no Século XX. Segundo a premissa política da Glasnost (abertura), determinaria que o futuro político e administrativo das nações do bloco do leste da Europa e do Pacto de Varsóvia não mais deveria ser determinado pela URSS e que a sua soberania e liberdade de acção deveriam ser totais. Seria ainda durante a sua liderança que cairia o muro de Berlim em Dezembro de 1989. Construía-se o mundo do futuro.

Enquanto isso, no acampamento da recém-formada legião multi-nacional árabe, nas montanhas do Afeganistão, a vontade de fazer história era imensa mas o modo de o conseguir era totalmente distinto do de Gorbatchov. O modo ali a empregar era o do velho combate militar, a filosofia da guerra e da morte. Do mesmo lado da barricada, contra os russos, estavam alinhados também os governos americano, saudita e paquistanês, ainda que o tentassem escamotear. Tudo isto eram rodas gigantescas de uma engrenagem que era já impossível parar. Observando cuidadosamente à lupa (ou ao microscópio, talvez, melhor dizendo) um dos pontos localizados desta engrenagem histórica gigantesca vemos o acampamento de Jaji, no Nordeste do Afeganistão, muito próximo da fronteira com o Paquistão, mergulhado nas montanhas e nas zonas tribais pastun. Ali construía Bin Laden aquilo a que chamou o Covil do Leão e, ali, a ansiedade fervia no sangue dos homens. O milionário saudita pretendia construir sólidos abrigos para os seus homens, tendo por isso requisitado máquinas de construção do Saudi Binladin Group para escavar as cavernas. Pretendia mais meios e mais protecção antes de colocar a vida dos seus homens em risco mas a maioria deles impacientava-se, preferia antes que não houvesse mais demoras em entrar em guerra, mesmo que isso obrigasse a fazê-lo de forma atabalhoada e com parcas probabilidades de sucesso. Yousef entendia Bin Laden. Nunca conversava directamente com ele mas nas conversas que tinha com o xeque Omar - que tratava Yousef agora como um afilhado - demonstrava-lhe francamente o quanto o idolatrava. Por isso, continuar a ser-lhe fiel era mais que um dever, era realização pura da alma. Via nele e no xeque Omar a alma de todo o futuro do empreendimento.

Meses se passaram em que Yousef se foi familiarizando com o acampamento e com os companheiros. Apesar da hesitação e da ansiedade, de condições precárias de higiene e alimentação, e da baixa moral que começava a querer minar até os espíritos mais imperturbáveis do acampamento, Yousef nunca se deixou abater. Era sempre dos que mais se empenhava em todos os treinos militares e dos mais esforçados em cada trabalho para que o designavam. Era também dos mais pacientes. Bebia todas as palavras do xeque Omar como um néctar dos deuses, considerava-as as mais sinceras e congruentes de todas. Elas ajudaram-no a ver tudo aquilo em que estava envolvido com o benefício de uma visão de longo prazo, acções orientadas por causas e objectivos bem definidos, distanciando-o cada vez mais do quadro real circundante em que seres humanos se guerreavam e se matavam. As causas e os objectivos eram maiores que tudo. O resto tornava-se por demais diminuído perante a magnificência deles.

No ano de 1987, Bin Laden ausentou-se do acampamento de Jaji para a Arábia Saudita. O xeque Omar pediu ao seu fiel seguidor que fosse os seus olhos e ouvidos durante aqueles dias de ausência do líder. Yousef estava radiante. Era a primeira grande missão. Sabia que encarar com disciplina e empenho todas as ordens do xeque Omar era a única via que levaria às vitórias. Queria aprender tudo com o seu mentor pois desejava fazer história, influenciar o mundo e combater os infiéis que aos poucos pretendiam, nada mais, nada menos, do que marcar o fim do verdadeiro islão. Yousef ambicionava tornar-se um grande combatente, um grande revolucionário e sentia-se perante o guia certo. Para cumprir com excelência a missão, bastava-lhe agora apenas ver e escutar, coisa que afinal não era tão fácil como poderia parecer à primeira vista. No acampamento, em volta de Bin Laden, havia sempre uma horda numerosa de egípcios. Yousef, influenciado pelo xeque Omar, via-os como desencaminhadores que mais não pretendiam senão influenciar o inspirador líder saudita em favor de causas próprias. Pensou que era ali que residia a razão por que o xeque Omar o incumbia da missão e concentrou-se neles.

Por esta altura, no acampamento de Jaji, estava também o xeque Tameem que, segundo o próprio xeque Omar, era um homem extremamente corajoso e de grande valor, muito aberto e desinibido no modo de exprimir as ideias mas também capaz de persuadir vários homens a entrar rapidamente em guerra durante a ausência de Bin Laden. O xeque Tameem, que pesava cento e muitos quilos, alimentava uma fervorosa vontade de entrar imediatamente em guerra, de sofrer o digno martírio de morte que o tornaria grande e glorioso nos céus e que o levaria a entrar nos portões do paraíso. Certo dia, conseguiu o acordo de alguns homens para integrar um assalto ao inimigo. Yousef ficou dividido. Não podia proferir uma palavra contra a entrada em guerra porque isso seria mostrar-se indigno de ali estar, seria parecer um cobarde, o pior dos pecados naquele grupo e naquela altura. O xeque Omar, contudo, insurgiu-se mesmo contra tal iniciativa mas foi incapaz de a impedir. Yousef manteve o sangue frio. Aquela batalha em si mesma pouco lhe interessava como pouco interessavam os homens à sua volta quando comparados com as causas e os objectivos maiores. Reuniu-se com o xeque Omar, num passeio sobre as montanhas e ambos concordaram que era preciso fazer alguma coisa. Era preciso comunicar com Bin Laden e avisá-lo que algo se preparava para suceder na sua ausência, contra sua vontade. O xeque Omar estava em posição delicada. Não queria, de modo nenhum, que se soubesse que tinha agido, fosse de que forma fosse, nas costas e contra os propósitos do xeque Tameem. Por isso resolveu deixar as coisas nas mãos de Yousef, sublinhando-o com as seguintes palavras:

- É preciso que faças alguma coisa, Yousef, mas terás de agir sob tua própria conta e risco. Não te poderei defender e é melhor que não saiba sequer das tuas acções. Mas agora vai, age. E age depressa.


[1] Gorbachov viria a arrecadar o prémio Nobel em 1990

O Milagre de YousefWhere stories live. Discover now