Yousef (2a parte) Cap. 4

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Do outro lado do desfiladeiro de Khyber estava a guerra. Histórias de valorosos mujaedines que, sozinhos, derrotavam grandes colunas soviéticas eram abundantes entre Yousef e os companheiros de campanha. Era chegada agora a altura de eles próprios entrarem no palco de guerra e construírem as próprias lendas. A fé era imensa. O pior que podia acontecer era a morte mas os seus contornos mais negros desvaneciam ante a noção de que ela potenciaria imensamente o valor e a glória de cada um daqueles valorosos guerreiros que lutavam por algo muito maior do que eles, chegando a sentir-se mesmo sob a aura sagrada e protectora do próprio profeta que, com toda a certeza, sentiam que ali estava acompanhando aquela campanha contra o infiel comunista.

Todas estas crenças que conferiam uma solidez infinita a cada acto dos mujaedines, tal e qual como cada átomo dá solidez à molécula que constitui a matéria sólida, se situavam num plano abstracto da mente e, apesar disso, eram mais fortes do que qualquer realidade palpável. Ou talvez por isso mesmo, já que a meta-realidade consegue tornar-se mais forte na mente humana do que a própria realidade que é tão falha, tão defeituosa e tão volúvel. A meta-realidade, mero produto do nosso cérebro, consegue ser mil vezes mais perfeita e chegar mil vezes mais longe e mais profundo dentro de nós. Por isso mesmo é tão poderosa e, simultaneamente, tão perigosa. Tudo, no fundo, nasce, vive e morre dentro da nossa mente.

A camioneta de caixa aberta onde os mujaedines seguiam viagem mais parecia um barco atravessando um conjunto de remoinhos, balançando e saltitando sobre os buracos e as pedras da estrada. A terra era muito clara. Aliás, tudo ali era muito claro. O sol brilhava muito branco sobre todas as coisas, empalidecendo as cores. Ao lado de Yousef, um rapaz meteu conversa com ele, um rapaz perfeitamente sintonizado na cadeia ideológica que os movia. Ambos estavam cientes, enquanto as rodas daquela camioneta somavam rotações infinitas sobre a terra árida e agreste, de que se aproximavam cada vez mais de um lugar onde os milagres acontecem, onde os bravos se distinguem e assumem o destino de peito aberto. E como todos eles apreciavam o espírito de Bin Laden! Ele era o grande exemplo para todos por várias razões: era inexcedível no apoio humanitário aos reféns de guerra; na angariação de fundos para esses fins e para a luta armada; na organização e na criação da campanha militar daquele grupo de apelidados afegãos-árabes, em que Yousef se incluía; e como lutava com tanto empenho, em cada tarefa, para alcançar o objectivo de que um dia houvesse um único povo irmão árabe, livre da opressão estrangeira, e unido pela identidade de pura base islâmica, cujos princípios orientadores de vida proviessem, sem interferências perniciosas de julgamento, directamente das palavras de Maomé, da Charia. Enfim, um único povo islâmico grandioso e super-poderoso no mundo, ao nível da sua história e da sua grandeza. Que honra servir aquele homem e tais propósitos! Em semelhante pedestal, aos olhos de todos, estava o xeque Omar Rasoul Sharif. Era nitidamente um homem íntegro, de princípios sólidos, merecedor do mais alto respeito e da mais firme confiança. Era frequentemente visto junto dos seus homens agindo como um deles, sempre com grande modéstia e sobriedade de gestos e costumes, ainda que fosse de poucas palavras e fosse alguém a quem os homens só dirigiam a palavra quando era realmente necessário, sempre com enorme reverência.

Apesar de nunca revelarem os nomes verdadeiros, Yousef e o seu interlocutor sempre foram falando um pouco das suas vidas ao longo da viagem, não tão longas quanto isso já que, segundo acabavam de descobrir, tinham ambos dezassete anos. Yousef evocou os pais e os irmãos que estariam neste momento em Djeda, seguindo o seu dia-a-dia rotineiro, à margem daquela causa porque eles se propunham lutar no Afeganistão. O companheiro falou-lhe também da família que deixara para trás, por coincidência, também na Arábia Saudita e também em Djeda. Quando a conversa aflorou a gloriosa honra da morte que poderia muito bem surgir em breve, em tão belas circunstâncias, Yousef emudeceu como se a morte fosse algo que não equacionara nos horizontes próximos, ao contrário do que sucederia com outros companheiros. Todavia, não era seu costume censurar ninguém e não o fez a este companheiro de campanha por demonstrar tão declarada honra numa morte próxima, quase fazendo parecer que era essa a única finalidade da sua participação na guerra. Em todo o caso, suficiente amizade nasceu ali entre os dois compatriotas acabados de se conhecer para que Yousef pensasse que se sentiria honrado de combater e morrer ao lado daquele rapaz da sua idade.

Finalmente, após várias horas de percurso, chegaram ao destino. Ao longe viam-se algumas máquinas pesadas de construção civil, retroescavadoras, tractores e bulldozers. No essencial construíam algo muito diferente daquilo que Yousef estava habituado a ver em Djeda: escavavam cavernas, algo tão primitivo quanto místico para todo o seguidor do Islão. Perfuravam através da extrema dureza do quartzo. Não será demais relembrar que foi no interior de uma caverna que Maomé conheceu o Corão através das sagradas palavras que o Arcanjo Gabriel nele insuflou. Pois era nelas, também agora, que se pretendia erguer o quartel-general de toda uma campanha que nunca chegou a ter muito mais de três mil afegãos-árabes no total mas cujos objectivos eram grandiosos e claros: derrotar o poderoso exército soviético que dominava o Afeganistão. Árdua tarefa. A par das cavernas, haviam várias tendas dispostas para abrigo dos mujaedines. A defesa militar montada em volta era mínima mas isso não preocupou Yousef nem nenhum dos companheiros. Sempre presente estava a noção de que algo maior, além de toda a compreensão, os defendia e impelia a qualquer acto, nem que fosse a morte.

Yousef já tinha ouvido falar na construção daquelas cavernas mas mesmo assim ficou siderado. Para ele eram mais uma prova da tenacidade de Bin Laden e do poder daquele empreendimento. Haviam sido construídas ali sete cavernas, algumas atingindo sessenta metros de comprimento por seis de altura, sendo utilizadas para fins tão variados como abrigos anti-aéreos, hospitais e depósitos de armas. No entanto, estas obras haviam custado tempo e Yousef cedo percebeu que ali todos se impacientavam com os sucessivos trabalhos de construção de abrigos. Pretendia-se acção sem mais delongas e a acção não tardaria.

O Milagre de YousefWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu