Então eu entendi, as sombras o avisaram. E pelas sombras ele abriu caminho atravessando onde eu estava. Elas o disseram.

— Suas sombras me seguiram. — digo sacudindo a cabeça um vez absorvendo isso.

— Todos temos sombras que nos seguem, as nossas costas, acompanhando-nos. As minhas só se movem junto a suas próprias.

O observei e Azriel manteve a expressão fechada e indecifrável, e não olhava mais para mim de qualquer forma. Sua visão estava a frente, novamente no nicho de corpos ainda espalhados pelo campo nevado. Naquele cenário foi a primeira conversa verdadeiramente decente que ele manteve comigo na última semana, a qual eu estive hospedada em sua Corte. O cheiro da carnificina já começava a incomodar, e eu não sabia o que ele faria com os corpos, ou o que Rhysand faria se acaso ele viesse. O que não aconteceu pelas próximas meia hora.

Ao meu lado Azriel suspirou.

— Temos que voltar. — ele diz e eu o olho sobressaltada.

— O que faremos com eles? — questionei em direção aos corpos.

— Alguém virá limpa-los. Ou algum animal irá limpar, eventualmente. — Azriel deu de ombros, num movimento frio que me fez encara-lo.

— Você não vai deixar eles aqui assim, vai? — indignei-me quando ele apenas ergueu uma de suas sobrancelhas grossas.

Observei novamente os corpos a frente. Eles mereciam um enterro digno,numa vez que suas mortes não o foram. Ao menos eu não os deixaria a mercê de algum dos animais ou do que quer que vivesse a noite nas florestas cuidassem de seus corpos.

Afastei-me de Azriel e caminhei até onde eles estavam, a cena que ainda vinha em ondas macabras e manchadas de vermelho rubi sangue, não me enjoava mais a medida que eu ia para perto. Eu precisava fazer isso, dar-lhes um fim digno e só esperei que eu não destruísse a floresta ao redor junto.

Respirei fundo, puxando o ar pelos pulmões e devolvendo devagar, concentrando o Poder em direção a pontas de meus dedos. Devagar. Tão lentamente eu o senti queimando minha pele a medida que ele se desvencilhava de mim, puro, negro, fervente; e ia em direção ao corpos, consumindo cada pedaço do que tocava.

— Que o Caldeirão lhe salve. Que a Mãe lhe segure. Passe pelos portões e sinta o cheiro da terra imortal de leite e mel. Não tema o mal. Não sinta dor. Vá e adentre a eternidade. — eu deverei a oração a medida que o Poder os consumia e deixava apenas um rastro negro de poeira em volta do círculo. Por um milagre da Mãe, quando eu decidi que era o suficiente e tomei a nuvem negra e lenta de volta, ela voltou para mim. Dolorosa e gradativamente, ao passo que todo o meu corpo doía e eu sentia como se fosse vomitar a qualquer momento.

Atrás de mim, o Mestre Espião da Corte Noturna não se moveu ou falou, mas eu podia sentir seu olhar queimando em minha nuca a cada movimento meu. Olhei para onde estiveram os corpos antes, onde agora restava apenas terra seca e queimada e um punhado de poeira a qual estava se espalhando ao vento. Aquele local seria sempre um lembrete do que havia ocorrido, mesmo que depois de esfriar, a neve o cobrisse, a relva talvez nunca mais voltasse a despontar ali.

Voltei para o lado de Azriel, com o corpo reto e a cabeça erguida, mas me recusei a olhar para ele, a sentir o que quer que fosse que ele estava pensando. Eu queria voltar a Velaris, eu tinha que me encontrar com uma dragão afinal de contas... Mas não era por isso que eu queria desesperadamente voltar. Eu queria me enfiar no quarto e tentar esquecer o que vi, a sensação de que o que tenha destroçado aqueles feericos, queria a mim também.

Azriel não disse uma palavra, apenas me ofereceu a mão para que pudéssemos atravessar de volta a Cidade, como se soubesse que eu não saberia atravessar de volta. E ele estava certo. Eu se quer sabia como tinha chegado até aqui, inicialmente. Respirei fundo antes de tomar o convite e deslizar minha mão pela dele para que ele nos atravessasse de volta. Foi quando aconteceu novamente, quando parte do que eu estava tentando evitar em seus olhos avelã, bateu sobre mim com seu toque. Foi rápido e relutante, como se ele soubesse que eu veria se o tocasse. A sensação de acolhimento em meio as suas sombras; eu tive a sensação de estar voando, quente e acolhedora, quando a aspereza daquelas mãos tocavam em mim. Em meu corpo... Em minhas asas. A sensação veio tão rápida quanto se foi, quando ele rapidamente puxou a mão para longe do meu toque assim que pisamos dentro do salão de jantar da Casa dos Ventos. Puxei o ar com aspereza quando a vertigem tomou conta da minha mente e me distanciei dele. Se Azriel percebeu eu não sabia, pois ele assim que nos atravessou de volta saiu do meu alcance e caminhou para longe, ainda indecifrável, ainda com as expressões frias e ilegíveis.

Caminhei de volta para o quarto da Ala Oeste onde eu fui hospedada depois da destruição do meu antigo quarto. Foi somente quando adentrei no espaço que eu me permiti desabar, corro para o banheiro e sinto que minhas tripas iriam sair garganta acima com as sessões de vômito que me acometeram um depois do outro. Eu ainda podia sentir o cheiro, ver o sangue... Os gritos, a dor, tudo... Os olhos completamente negros olhando de volta para mim no meio do vazio. Puxo o ar, prendendo-o e soltando devagar. Arranco o vestido, agora sujo, e entro na banheira magicamente quente e deixo meus músculos derreterem na água.

Fecho os olhos e deixo a água me lavar, tentando não pensar, não lembrar. Saio do banho e encontro mais vestes sobre a cama de lençóis negros de seda. Dessa vez um conjunto composto de uma calça de tecido fluído e solto, com elástico na cintura alta e na bainha das pernas e uma blusinha de mangas compridas, também fluida e com o mesmo elástico folgado nos punhos. E incrivelmente havia um conjunto de lingerie combinando. Imagino se as irmãs o escolheram. Não reclamo entretanto, apenas visto as roupas e pego o par de sapatos de camurça bordado combinando.

Não saio do quarto entretanto, esperando a hora que eu pudesse encontrar com Amren e ela me orientasse sobre o que eu era e como eu podia controlar isso. Rapidamente, meus pensamentos traidores seguiram para a sensação do toque do Encantador, a familiaridade em seu toque, a intimidade nele. Não era real. Era como uma lembrança distante, algo que não aconteceu e aconteceu ao mesmo tempo. O toque em minha pele, a aspereza familiar das mãos, o dedilhar pelas asas. Meu corpo inconscientemente se aqueceu com isso e eu me obriguei a tirar esse pensamento da cabeça.

Eu ia ficar louca. E a culpa seria dele.

 E a culpa seria dele

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.
Príncipe das SombrasWhere stories live. Discover now