Capítulo 36→" Leve o tempo que precisar."

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          1 de Dezembro, sábado

Eu me encontrava, no fim da tarde, deitada na minha quente e desarrumada cama. Ainda tentava me conectar a tudo oque via, pois tinha acabado de acordar de mais um sono profundo e gostoso. Ao me acostumar com a luz alaranjada que entrava com pouca intensidade no meu quarto, cobri minha cabeça com o lençol e pude ver meu corpo vestido só de uma calcinha e uma camisete enorme do meu pai. Por eu estar deitada de costas, a camiseta detalhava um pequeno inchaço que tratou de me colocar em pânico.

Como se tivesse recebido um toque brusco de algo gelado na região da barriga, os arrepios partiram dali e percorreram todo meu corpo quente. Minha cara obteve traços de preocupação e meu peito não subia nem descia da forma como fazia antes que eu notasse aquilo.
Não tinha parado para me analisar durante todos aqueles dias.  Sabia sim que aquilo aconteceria, mas não que seria tão cedo.

Devagar, retirei minha cabeça de baixo do lençol e fechei os olhos com força, respirando fundo.

— Não precisa ter muita pressa bebé, leve o tempo que precisar. Quanto mais tempo levar, melhor. — falei enquanto choramingava e ocupava minha mão com meu cabelo em xikwenhetas¹

Ao notar que, pela primeira vez, eu tinha me dado tempo para falar com oque quer que estivesse na minha barriga, eu sorri. Mas não era de felicidade ou algo do gênero, era de nervosismo, era porque eu tinha me dado conta que as coisas iam começar a dificultar-se por ali.

— Posso entrar? — a dona de uma voz bem conhecida perguntou depois de cinco batidas na porta.

— Ya. — soltei sem ânimo algum.

Assim que entrou, minha prima me permitiu vê-la de um vestido e uma pasta de costas, para além dos headphones que circundavam seu pescoço.

— Olá. — fechou a porta atrás de si e começou a caminhar até minha cama.

— Olá.

— Não há ânimo nem para te e nem para tua mãe. Eu já sei com oque isso tem haver, mas vou perguntar para ter uma resposta específica. Oque se passa?

— Senta aqui. — lhe puxei pela mão para que ela se sentasse na cama e eu me levantei. Tropecei um pouco no tapete que ali havia, mas ignorei o fenômeno e parei de lado para Agnes. — Não estás a ver algo de diferente aqui?

Minha prima me analisou com desentendimento no olhar antes de falar:

— Nada, só essa camisete grande que parece ser do tio Ivan.

— Ok. — revirei os olhos e passei minhas mãos por cima da camisete, com a intenção de fazer com que a mesma detalhasse minha barriga como fez da primeira vez — Agora?

— Ainda n... — parou por um momento e centrou seu olhar naquela região — Meu Deus! — arregalou os olhos e subiu seu olhar surpreso até o meu olhar assustado.

— Pois é, é por isso que eu estou assim. Tou com medo e não imagino até quando vou esconder minha barriga.

— Tá bem, mas ainda não se nota.

— Agora. Mas já é um começo, tendo em conta que você notou. — falei e fui me sentar do seu lado.

— Aaah...na verdade eu não notei assiiiim...tipo notar ao tooodo assiiim.... — fez uma careta e eu a olhei sem entender — Já dava para deduzir oque estava a se passar só pelo facto de você ter passado a mão pela barriga. — torceu os lábios — Acredita, não se nota.

— Tem certeza? — me levantei novamente de forma brusca e parei exactamente como estava, fazendo a mesma coisa para que ela se certificasse do que falava. — Porque eu notei.

— Isso é algo muito óbvio, Vivu. Você é dona do teu corpo. Como não notar? Até me admira você estar a notar isso hoje.

— Você entende quando eu falo, nem? Tem uma coisa, Agnes. Se gravidez fosse só os sintómas do início ao fim, se fosse só ter que contar para minha mãe e meus amigos, para mim estaria tudo de boa. Mas o problema é que tem meu pai para contar, tem essa barriga que já começou a crescer e duvido que pare, tem aquele receio que vou ter de sair de casa por saber que vou receber olhares horrorrizados da saída até a chegada e por aí em diante. Eu evito ao máximo focar na minha evolução como gestante porque tenho medo e é um medo que parte de mudanças próprias até as acções e reações dos outros.

 Ficou algum tempo em silêncio com os olhos presos num ponto atrás de mim.

— Tua mãe já sabe?

— Não. Descobri há pouco tempo.

— Você disse para tia Zélia que eu sei que você está grávida?

— Não, porquê?

— Desabafou comigo coisas que lhe preocupam e que têm haver com tua gravidez sem nenhum receio.

— Oque ela disse?

— Que não sabe como dizer isso para tio Ivan porque tem medo da reacção dele.

— Entendo. Eu sinto o que ela sente ao quadrado.

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Já na mesa de jantar, eu ouvia o som abafado da TV se misturar com a voz do meu pai enquanto ele falava.

— De facto, as áreas de engenharia e arquitetura são para pessoas que não têm preguiça de estudar. Mas agora vocês têm mais opções de escolha, até porque vocês estão menos limitados que nós. Na época em que eu fiz o ensino superior, início de 2000, só se podia fazer curso consoante a secção que foi feita no segundo ciclo. Agora você pode fazer geografia enquanto fez ciências com biologia, por exemplo.

— Mas seria burrice. — Agnes falou meio receosa e teve risos dos meus pais como resposta.

Apenas ouvia a conversa sem me preocupar em fazer parte. Ocupava minha boca com comida. Arroz de cenoura, cebolada de frango e batatas fritas, se faziam em um só a cada mastigar do meu maxilar. Já era o segundo prato, mas era como se tivesse comido só uma colher.
Durante o jantar, algumas vezes meu olhar e da minha mãe se cruzavam assim que meu pai ria de alguma besteira jogada ao ar no meio da conversa. Era como se nós compartilhassemos do mesmo medo e aquilo me fazia sentir mais culpada ainda, tê-la colocado naquela situação toda.
 
Enquanto mergulhava nos meus pensamentos íntimos, comia como se tivesse ficado meses sem comer. Apenas parei por um momento para ouvir oque Agnes tinha para dizer.

— Tios, é assim: eu estou num grupo de amigos e colegas que organiza sociais de dois em dois meses, então nós decidimos fazer um na tarde deste domingo. Chamamos de festa de mistos, em que cada um prepara um doce ou salgado diferente para contribuir. Só que como adoramos conhecer novas pessoas e queremos trazer mais pessoas ao grupo, cada um dos membros trás um enigma, ou seja, um convidado "especial" para participar do social. Então, eu queria pedir a vossa permissão para levar Evie como meu enigna desta vez.

Olhei para Agnes como se ela fosse maluca. Meus traços faciais questionavam suas condições psíquicas. Só podia ser maluca para fazer aquilo, mesmo depois de ter explicado para ela como me sentia insegura e desconfortável fora do meu quarto, ainda mais fora de casa.

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Xikwenhetas — em Moçambique, os maxanganas/marrongas, chamam xikwenhetas as tranças muito grossas feitas nos cabelos crespos e naturais das mulheres.

EVIE: Das Más Escolhas Nasceu A Maturidade Where stories live. Discover now