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Após um período intenso de chuvas, finalmente a noite prometia ser limpa e agradável.

As primeiras estrelas despontam no céu, enquanto ele caminha com dificuldade pela floresta, mancando da perna ferida, que provavelmente não voltaria a ter a mesma firmeza de antes.

Nada voltaria a ter a mesma firmeza de antes.

A última luminosidade no horizonte o ajuda a encontrar a linha tênue sobre o chão da cabana.

Ele pressiona o interruptor, acendendo o cômodo.

Sem pressa, caminha pela sala, percorrendo todos os móveis com as mãos, sentindo cada relevo, cada memória.

Tudo que poderia dar errado já havia acontecido, e agora, apesar do sentimento de frustração que pesava sobre seus ombros, não tinha mais motivos para sentir medo.

Ninguém o perseguiria, e ele não precisava mais correr no escuro.

Agora podia andar sem máscaras, porque todos já sabiam quem ele era e tudo que havia feito. Agora a cidade não era mais sua, e, por esse mesmo motivo, ele se sente finalmente livre para existir sem expectativas, sem papéis a cumprir. Não era mais o Sacerdote. Era apenas um recipiente vazio, esgotado, e partido...

- Olá, Dantálion.

O cômodo continua imóvel, indiferente à sua voz.

- Espero que não se importe que eu leve algumas coisas... Você sabe, os Surdos me baniram da cidade, e eu acabei rasgando minha túnica para estancar o sangue...

Ele abre os armários, retirando cuidadosamente as camisas de algodão grosseiro.

- Acho que ficarão um pouco compridas em mim, mas eu não me importo.

Vasculha as gavetas, pegando uma lanterna nova, um mapa e uma bússola, e coloca todos os itens dentro da mochila, que também havia tomado para si.

Assim que reúne tudo que julga necessário, passa os olhos sobre os títulos dos livros, retirando alguns que lhe chamam a atenção e os colocando na mochila, ao lado do livro de poemas que, por sorte, conseguira recuperar no meio dos arquivos de Anton.

Sobre uma das estantes, ao lado de outras lâminas, o cabo de madeira negra se sobressai.

Ele pega a adaga nas mãos.

Sua lâmina não é mais tão reluzente e perfeita como da primeira vez que a viu. Alguns riscos sobre o metal prateado indicam que ela já havia conhecido carne e sangue humanos.

- Parece que as cicatrizes vão nos perseguir para sempre.

Ao terminar, deixa a mochila sobre a mesa e caminha até o aparelho de som, ligando-o. O último CD que haviam escutado ainda está no compartimento, e a música suave invade o ambiente com centenas de memórias.

Ele manca até o cômodo menor, onde Dantálion guardava as bebidas. Pega uma garrafa de vinho e a coloca no chão, ao lado de dois copos.

Enche os dois copos até a boca, e bebe de um deles, sentado sobre o chão, da mesma forma que costumavam fazer. O outro copo permanece cheio.

- Acho que fui um tolo de não perceber o que você sentia por mim. E eu sinto muito por isso... Queria ter tido a chance de te mostrar que eu também te amava.

Ele enche seu copo novamente.

- Você estava certo, afinal de contas. Os Surdos não são tão bons assim. Eles mal sabem como organizar a cidade. Eu poderia ajudar, mas eles não querem que eu interfira.

Ele recosta a cabeça no sofá, suspirando.

- E eu também não me importo em ficar aqui. Iria embora, de qualquer maneira. O que eu faria aqui, sozinho? Preso entre as fronteiras, morrendo a cada dia sem ter você ao meu lado para me fazer viver, lembrando a cada momento de tudo que passamos juntos? Eu não aguentaria.

Uma lágrima escorre por sua face.

- Me diz por que é que não fomos mais rápidos? Por que é que não fizemos essa merda de revolução antes, enquanto você estava vivo? Por que esperamos tanto?

Ele esconde o rosto entre os joelhos, soluçando.

- Por que você deixou aquele poema estúpido lá em cima?! Por que deixou que o encontrassem?! Você, que me fez engolir aquele bilhete com medo que alguém o visse! Por que fez isso, Dantálion?! Será que você realmente queria morrer? Ou será que ficou tão cego por seus sentimentos que cometeu um erro? Eu não consigo entender! E não consigo acreditar que você tenha sido tão idiota, assim como não consigo acreditar que você tenha feito de propósito! Você me abandonaria assim? Você me obrigaria a fazer o que eu fiz?! Com minhas próprias mãos?! Eu nunca vou te perdoar por isso! Eu nunca vou me perdoar!

Um choro compulsivo o toma conforme o vinho o deixa mais emotivo.

- Eu prometi que estaríamos juntos quando tudo isso acabasse, e falhei. E agora eu não sei se consigo manter a outra promessa, se consigo continuar vivendo com essa culpa... Se algum de nós merecia estar vivo hoje, esse alguém é você. Eu não mereço. Eu não queria estar aqui para ver sua casa vazia, preferiria ter morrido naquele mesmo dia, com você.

Ele respira fundo, fechando os olhos e imaginando a presença do amigo ao seu lado.

- Eu morri naquele dia, Iago.

Lúcio enche seu copo mais uma vez, e se levanta, deixando a garrafa aberta ao lado dos dois copos cheios.

Pega a mochila, caminhando pela sala novamente. Avista a caixa do jogo de xadrez num canto, e a coloca sob o braço, levando-a também.

Antes de passar pela porta, lança um olhar corroído pela saudade para o cômodo vazio.

- Eu deixarei os nossos copos cheios, Dantálion, assim nossas almas não terão sede, e poderemos conversar por toda a eternidade, sobre poemas, sobre música, sobre histórias do passado e lugares que nunca visitaremos. Minha alma já morreu, e eu a deixarei aqui com você, meu amigo, meu companheiro de dor, meu primeiro e único amor.

Ele apaga a luz.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now