4.

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Ele pensa algumas vezes em denunciar o garoto, mas decide por não fazê-lo, pelo menos não por enquanto. Com certeza aquele sujeito jamais teria coragem de dizer nada sobre o caso da Audição, e, mesmo se dissesse, tinha mais de um motivo para ser punido. Ninguém seria assim tão estúpido. Afinal, os Crimes Imperdoáveis incluíam o desacato ao Sacerdote, e, se aquele garoto resolvesse levantar qualquer acusação contra ele, seria imediatamente acusado pelo que fez e receberia a pena dos Crimes Imperdoáveis.

Ele não tinha nenhuma prova, mas isso não seria problema. Nunca se exigiam provas por parte dos Sacerdotes. Além do mais, nunca houve nenhum Sacerdote que fosse punido por qualquer crime, os raros casos em que foram acusados de algo acabaram com a morte dos acusadores. Sempre terminava que eles estavam inventando histórias porque queriam se livrar de algum crime que eles mesmos tinham cometido. Seria a mesma coisa caso aquele garoto resolvesse abrir a boca.

Mas logo os pensamentos dão lugar a uma ansiedade que nunca sentiu antes: a próxima Audição seria conduzida por ele, sem a ajuda de ninguém. Era difícil dizer o que o deixava mais nervoso, se o fato de conduzir a cerimônia, ou o fato de entrar no Templo pela primeira vez para receber as instruções da Voz.

O dia da Audição chega com o calor insuportável da estação quente. O sol está quase no ponto mais alto do céu quando a cerimônia começa, mas parece estar suspenso a apenas alguns metros de distância sobre a cabeça das pessoas que observam o filho do Sacerdote subir as escadas que levam ao Púlpito.

Ele está deslumbrante em sua nova túnica, totalmente branca, com detalhes de ouro sobre o tecido. O manto foi feito sob medida para ele, de modo que flutua a alguns milímetros sobre o chão conforme anda. Seus olhos são a primeira coisa a aparecer sobre o púlpito de cristal. Ele demonstra confiança em seus movimentos, porém a primeira nota de sua voz sai desafinada e rouca, transparecendo seu nervosismo. Ele aperta a borda do Púlpito e retoma o controle sobre a própria voz:

- Irmãos, é uma honra estar aqui hoje, servindo pela primeira vez como Sacerdote. Eu tenho estudado e trabalhado durante toda minha vida para servir ao meu povo e à Voz que nos dirige, e espero realizar grandes feitos por todos nós.

O público aplaude, extasiado. O agora Sacerdote sorri, aliviado, enquanto gotas de suor escorrem de sua testa. A primeira parte já foi.

Ele se vira na direção de seu pai, que, já vestido com as roupas brancas usadas pelos antigos Sacerdotes, se aproxima. Ele retira a cinta dourada que usa em torno da túnica, amarrando-a ao redor da cintura do filho, como símbolo da transmissão de seus encargos espirituais. A cinta pesa uma tonelada enquanto a multidão aplaude energicamente o seu novo líder.

Quase como mágica, as portas do Templo começam a ranger e vão se abrindo vagarosamente, enquanto o novo Sacerdote caminha, com o coração pulsando por todo seu corpo, o rosto e as mãos suando.

Ele está parado diante das portas abertas. O povo e todos os presentes devem estar com os olhos fechados agora. Mesmo assim, resiste à curiosidade de olhar para trás e mantém os olhos fixos no interior do Templo.

Não consegue distinguir nada na penumbra do interior. De dentro sai um ar gelado, cheirando a coisas antigas e misteriosas. O jovem líder prossegue, mais atraído pelo frescor do ambiente do que por qualquer função espiritual.

Assim que dá o primeiro passo adentro, seu sentimento é de vergonha. Vergonha por ter ali entrado apenas para fugir do calor. Um medo profundo de estar cometendo um crime o invade. Será que a Voz o aceitaria, mesmo depois de colocar os pés no solo sagrado com um pensamento tão impuro? Como poderia ele, no momento mais sagrado de toda sua vida, ser tomado por pensamentos desse tipo? Ele implora por perdão em sua mente. Deveria se concentrar no que está fazendo.

É o estrondo das portas se fechando atrás dele que o tira de seu desconforto mental. Sobressaltado, olha para trás. As portas estão totalmente fechadas, ninguém pode vê-lo agora. Mas claro que ninguém o veria, estão todos de olhos fechados. Talvez nem todos... Talvez aquele garoto...

Lágrimas começam a embaçar sua visão. Está ele ali, no interior do Templo, prestes a ouvir a Voz, e tão disperso quanto uma criança assustada, pensando no calor, pensando no garoto estranho, sentindo vergonha, medo e outros sentimentos profanos. A frustração que o toma é avassaladora. Sua vontade é correr pelas portas afora gritando "eu não sou capaz!" e deixar tudo o que construiu desabar completamente.

Mas não faria isso. Não, porque estar no interior do Templo significava que ele era agora o Sacerdote. Deixar de ser um Sacerdote faria com que tivesse violado a primeira e mais importante lei dos Crimes Imperdoáveis: entrar no Templo. E nenhum Sacerdote jamais havia deixado de ser um Sacerdote dessa maneira.

Com medo, fecha os olhos e cai de joelhos sobre o chão frio de mármore azul. Seu primeiro pensamento ao entrar no Templo era o de abandonar sua função. Como podia ser tão insolente assim? Precisa se acalmar e retomar o controle.

Aqueles pensamentos certamente eram sementes malignas tentando corrompê-lo, e era sua obrigação como Sacerdote expurgar o mal. Continuar a sucessão. Prosseguir com a tradição.

Ele permanece em silêncio por longos minutos, sem mover um músculo, até sua mente se acalmar. Só então se concentra e espera por aquilo que sempre foi o sentido último de sua vida. Espera pela Voz.

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now