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A corredeira está muito forte ainda, e os dois têm que tomar cuidado redobrado ao lavarem o rosto e os pés, livrando-se com alívio da maior parte do barro.

Apesar de a chuva ter se acalmado, o frio continua aumentando, arranhando a pele por sob as roupas molhadas. Impossibilitados de acenderem uma fogueira, tanto pelo chão encharcado quanto pelo medo constante de serem vistos, a única forma que encontram para se aquecer é ficando próximos, sentados um ao lado do outro, os corpos trêmulos e úmidos se tocando.

- Eu gostaria de ouvir uma música essa noite, você se importa? – pergunta Dantálion, agora mais calmo, retirando o aparelho eletrônico do bolso, surpreendentemente seco e funcionando.

- Fique à vontade.

Uma música suave começa a tocar, ecoando pela pequena clareira.

Dantálion recosta a cabeça sobre o tronco de árvore caído que lhes serve de apoio, fechando os olhos.

- Essa é a música mais bonita que já inventaram, com certeza. – comenta, toda a dor em sua voz substituída por paz.

- Como se chama?

- O nome é em outra língua, mas acho que significa luar, ou alguma coisa do tipo.

Lúcio se reclina também, olhando para o céu, piscando os olhos enquanto algumas gotas caem sobre eles.

- É realmente muito bonita... Pena que hoje não tem lua.

Dantálion vira o rosto em sua direção, seus olhos escuros brilhando com uma tranquilidade que seria impossível alguns minutos antes.

- Quem precisa de uma lua no céu quando eu tenho você ao meu lado para iluminar minha vida?

A declaração repentina não faz Lúcio corar, como geralmente faria. Ele apenas retribui o olhar, retorcendo os lábios em um sorriso amargo.

- Quem me dera poder iluminar alguma coisa, Dantálion. Nossas vidas não passam de escuridão e medo, e nem mesmo sei se ainda existe alguma luz dentro de mim. Eu me sinto tão... Apagado.

Dantálion fecha os olhos novamente, sorrindo.

- Talvez você não consiga ver, mas tenha certeza de que você foi como um sol de madrugada em minha vida. Eu nunca fui tão feliz como nestes dias, e jamais imaginei que eu pudesse sentir alegria e esperança de novo, antes de te conhecer. E estou feliz de ter este momento, por mais breve que seja. Gostaria de ter te conhecido antes, de ter sido seu amigo por longos anos, e de poder continuar ao seu lado para sempre...

Ele abre os olhos, uma lágrima descendo vagarosamente por seu rosto.

- Mas cada segundo ao seu lado durou uma eternidade, meu amigo. Obrigado por salvar minha vida, Lúcio, e obrigado por salvar minha alma. - colocando a mão esquerda sob a nuca do outro, ele encosta seu rosto ao dele - Você não vai me perdoar por isto. Mesmo assim, eu sinto muito.

Dantálion toca os lábios levemente em sua testa, fechando os olhos numa expressão de dor antes de se afastar.

Seu sorriso esvanece, seu rosto tornando-se subitamente distante e duro.

Ele se levanta, transfigurado, e olha com arrogância para Lúcio.

- A partir de hoje você não me conhece mais, Sacerdote. Nunca mais me procure.

Surpreso e tomado pelo choque, Lúcio se levanta também, tremendo de nervoso, as palavras escapando de sua boca furiosamente:

- Do que você está falando?! Qual o problema com você?!

- Vá embora, é meu último aviso. Eu não quero te machucar.

A grosseria e frieza com que Dantálion profere as palavras o acertam como uma facada.

- Dantálion?! – pergunta mais uma vez, os olhos arregalados de medo diante da mudança súbita de humor do outro – O que houve com você?!

- Vá embora antes que seja tarde.

- Não! Eu não vou te deixar aqui sem...

Um tapa lhe acerta. O garoto contorce o rosto em uma máscara de raiva e agarra seu pescoço com uma das mãos, empurrando-o contra o tronco em que estavam apoiados.

- Qual é meu nome, Sacerdote?! – ele pergunta, seus olhos penetrantes e injetados como os de um demônio.

Lutando para falar, Lúcio responde:

- Dantálion.

Um novo tapa atinge seu rosto, fazendo-o arder. A pressão em sua garganta não cede.

- Qual o meu nome, Sacerdote?! – repete, ainda mais furioso.

Lágrimas quentes começam a rolar sobre o rosto de Lúcio, seu coração arrebentando.

- Por favor, Dantálion, eu...

O garoto aperta seu pescoço com mais força.

- Eu vou perguntar pela última vez e espero que você responda corretamente: qual é o meu nome?

Destruído em seu interior, Lúcio não contém nenhuma lágrima, um soluço tentando subir por sua garganta obstruída.

- Eu não sei o seu nome! – grita por fim, apertando o braço do outro entre seus dedos – Eu não sei nada sobre você!

Dantálion o solta, deixando seu corpo cair flácido sobre o chão.

Lúcio tosse várias vezes, soluçando incontrolavelmente, sem conseguir se levantar.

- Muito bem, Sacerdote. – retorna a voz impiedosa – Você não sabe meu nome, nunca ouviu falar de mim, nem mesmo sabe como é meu rosto. Entendeu?

- Por que você está fazendo isso comigo?! Por que você é tão cruel?! Eu pensei que confiasse em mim!

Dantálion o encara com frieza, abaixando-se ao seu lado para olhar em seus olhos.

- De hoje em diante, nós somos estranhos. Você consegue entender o que estou dizendo? Eu te avisei desde o começo que iria ser assim. Aprenda isso se não quiser morrer. Agora vá para casa, você precisa descansar para amanhã.

Lúcio permanece chorando no chão, a indignação e a mágoa estilhaçando seus sentimentos, enquanto o garoto insensível se afasta.

Ele olha uma última vez para trás.

- A partir de agora você é o Sacerdote. Aja como tal. Faça o que um Sacerdote faz.

Ao virar o rosto para longe, uma última lágrima cai de seus olhos negros.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora