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Além do horizonte do lugar em que vivíamos na infância
num mundo de imãs e milagres,
nossos pensamentos vagavam constantemente e sem limites
e os sinos da divisão haviam começado a soar.

A grama era mais verde.
A luz era mais brilhante.
O gosto era mais doce.
As noites de fascínio,
com amigos ao redor.
A água fluindo,
e o rio sem fim.
Para sempre e sempre.

Pink Floyd - High Hopes

Vero o espia atrás da porta entreaberta

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Vero o espia atrás da porta entreaberta.

- O que estava fazendo?

- Nada.

O velho acena com a cabeça, sem se convencer.

- Venha comigo. Quero falar com você.

Lúcio o segue através dos corredores estreitos que mais parecem labirintos, chegando até seu quarto, um dos últimos, num dos cantos mais escondidos e mal arejados do Palácio.

O Auxiliador gesticula para que ele entre, fechando a porta atrás de si.

O quarto do Auxiliador é abafado e tem poucos móveis, apenas uma cama modesta, uma mesa e uma cadeira, iluminadas precariamente por uma minúscula lamparina a óleo. O que mais chama a atenção, porém, é a quantidade absurda de plantas que pendem em todas as direções, de vasos posicionados no teto, nas paredes e no chão. As tampas de vários frascos de medicamentos se deixam ver acima da borda de caixas de madeira escura.

- Lúcio, - fala o velho, olhando para os próprios pés – eu não vou perguntar se foi você o autor desta situação, porque não é da minha conta, nem de meu interesse. Mas espero que você tenha consciência das consequências que se seguirão.

O Auxiliador abre uma gaveta, retirando um frasco semelhante ao que havia utilizado para colocar o veneno. Ele estende o recipiente para o garoto.

- Este é um veneno também, mas é bastante diferente. Este – é interrompido por um acesso de tosse – é o veneno que usei em sua mãe.

O Sacerdote afasta a mão do corpo, como se o mínimo contato com aquele líquido pudesse destruí-lo.

- Ele simula uma doença. – continua Vero – Começa deixando a pessoa fraca, com sintomas de gripe, até que ela começa a perder os movimentos e os sentidos, e cai em um sono profundo. Uma dose maior leva à morte em poucas horas, mas uma dose pequena, como a que administrei à sua mãe, pode levar dias, de modo que ninguém desconfiaria que a pessoa foi envenenada. Fique com ele, e use, caso seja necessário.

Lúcio aperta o frasco entre os dedos, fechando os olhos.

- Por que você a fez sofrer tanto?

Vero sacode a cabeça, sem coragem de olhá-lo. Ele se senta sobre a cama, expirando um longo sopro cansado.

- Eu queria te dizer uma coisa. – murmura - Queria te dizer que desejo que você seja livre para escolher o seu caminho, se é isto que escolheu.

- Não sei do que está falando.

Os olhos castanhos de Vero o observam com impaciência.

- Sim, você sabe, Lúcio. Estou falando deles.

Um novo acesso de tosse.

- Eu trabalhei ao lado dos Surdos, como ele já deve ter te contado, assim como sua mãe. – retoma, com olhos pesados – É um caminho difícil, cheio de dor e sofrimento, mais do que você seria capaz de imaginar.

- Eu não preciso imaginar, - corta o Sacerdote, com raiva – eu sinto.

- Não, Lúcio, você não sentiu ainda.

O Auxiliador se deita completamente na cama, respirando forte.

- Você e Dantálion são jovens, muito jovens. – diz em voz fraca – Que sofreram bastante, eu não duvido. Aquele garoto, principalmente. – seus lábios finos se contraem num sorriso amargo – Mas existem coisas que vocês ainda não descobriram, como o fracasso. Eu desisti de meus ideais enquanto era tempo, e garanti mais algumas décadas para mim. Sua mãe, por outro lado, era corajosa demais para fazer o mesmo, e acabou pagando com sua vida.

- Garantiu algumas décados do quê? – provoca Lúcio, perdendo a calma – Algumas décadas disto? – aponta para o quarto minúsculo – Décadas sendo manipulado, com medo, mantendo suas palavras escondidas, aceitando tudo que eles te dizem para fazer?! Me enganando?! Mantendo meu passado em segredo?! Você não tem metade da coragem que minha mãe tinha! Você deveria se envergonhar! Você nunca foi um Surdo! Você sempre foi um... Um...

- Um Auxiliador. – interrompe Vero – Sim, você tem razão, garoto. Eu nunca tive metade do caráter de sua mãe, e nunca me orgulhei disso.

- Então por que fez isso?! – grita o Sacerdote, lágrimas brotando nos cantos de seus olhos – Por que escolheu fazer parte desse sistema de merda?!

O Auxiliador estende a mão para ele.

- Chegue mais perto. – sussurra.

Lúcio obedece, lutando para conter o choro.

Vero toca seu rosto com uma das mãos trêmulas, sorrindo. É a primeira vez que Lúcio o vê sorrir.

- Você tem os olhos de sua mãe, e eu fico feliz de poder vê-los. É por isso que escolhi ficar aqui. - ele recosta a cabeça sobre o travesseiro outra vez, suspirando – Mas a vida que você escolheu jamais te permitirá um momento de felicidade, meu filho, e eu lamento por tudo isto. Lamento por ter deixado isso acontecer.

O Auxiliador olha uma última vez em seus olhos.

- Não faça como eu fiz, não deixe que seu coração seja destruído pela dor. Não espere o pior acontecer. Salve-se enquanto há tempo.

Vero fecha os olhos lentamente.

- Eu preciso descansar agora. Apague a luz quando sair, Lúcio.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now