7.

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Para seu espanto, ninguém, nem mesmo seu pai, comenta a respeito da Audição. Todos parecem repentinamente absorvidos pelo banquete, esquecidos completamente de toda a sacralidade do que havia ocorrido alguns minutos antes.

Esgotado e ainda um pouco abalado pela experiência que acabara de ter, o Sacerdote come vagarosamente, com o pensamento distante, entorpecido pelos murmúrios das conversas dos outros. Os vinte Auxiliadores estão ali, a grande maioria décadas mais velhos que seu pai. Apesar de só haver um Sacerdote oficializado, todos os Auxiliadores servem de intermédio entre ele e o povo, cada um responsável por um dos diversos grupos de trabalho, além, claro, de seu Auxiliador pessoal e do Auxiliador da Justiça.

Mesmo tendo participado de vários eventos importantes, raramente ele via um banquete tão opulento quanto aquele. A crise das colheitas parecia ter chegado ao fim.

A visão de um magnífico montante de carne desvia sua atenção. Com uma casca avermelhada e suculenta, parecendo delicioso, um enorme javali assado é trazido pelos cozinheiros sobre uma também enorme travessa de prata e depositado ao centro da mesa. Os Auxiliadores sorriem, mal contendo sua excitação diante do prato.

Chocado pela visão, seus talheres caem de suas mãos, fazendo o prato em que comia reverberar como um sino agudo. Atraído pelo som, o pai vira o rosto em sua direção.

- Há algo errado, filho?

O garoto mastiga o resto de carne que havia ficado em sua boca, tentando ganhar tempo para pensar na resposta. Por algum motivo, tem a intuição de que dizer o que realmente pensa não seria a atitude mais inteligente, mas logo muda de ideia. Ele é o Sacerdote, afinal. Se ele não pudesse dizer o que pensa, quem mais poderia?

- Esta comida... – diz ao engolir a massa seca em sua boca – Ela veio das oferendas que foram feitas na outra semana?

- Sim, filho.

- Mas... As oferendas não eram para a Voz?

O pai ri, assim como alguns dos homens que, por sentarem mais próximos, ouviram a pergunta. O pai se ajeita na cadeira, assumindo o mesmo tom de voz que sempre usa quando quer lhe ensinar algo:

- Diga-me, filho, a Voz tem estômago?

- Não... – responde, relutante.

- Está certo, a Voz não tem estômago. Mas nós temos. A Voz pediu as oferendas, mas não pode comê-las, então nós realizamos a consagração.

- Senhor Sacerdote, - diz o Auxiliador sentado ao seu lado, um velho que sempre tem o costume de se intrometer em suas conversas – A Voz, quando pede algo, não pede para si, e sim por todo o povo. Quando o povo dá suas oferendas, são eles mesmos que são beneficiados por isso, aprendendo a se desapegar destas coisas vãs e passageiras e dando valor ao que é mais precioso: aquilo que não é acessível pelo corpo. Ora, as oferendas não pertencem à Voz? E não somos nós os representantes da Voz? Assim, a Voz também nos abençoa. Quando comemos dos seus alimentos sagrados, o espírito da Voz se fortalece dentro de nós.

Os homens próximos movem as cabeças positivamente, concordando com o que o Auxiliador diz.

O jantar prossegue. Todos se esquecem da conversa e voltam a se concentrar na comida. Todos, menos o Sacerdote, que, incomodado, se recusa a comer do javali, o prato mais cobiçado da ocasião. Ele tenta se manter o mais natural possível, apesar do desconforto.

Os trabalhadores que ofertaram o javali pareciam muito mais famintos que qualquer membro do Palácio. Eles pareciam cansados, infelizes e sujos. Seria de melhor proveito que eles mesmos tivessem comido aquele javali, e provavelmente era o que desejavam, era o que necessitavam. E agora o animal estava ali, no centro de uma mesa que já estava transbordando de outras comidas. Sendo um alimento consagrado ou não, a sensação de estar comendo algo que não deveria pertencer a ele o deixa sem apetite.

Existem muitas coisas que não consegue compreender, porém algo dentro de si lhe diz que não é bom fazer muitas perguntas. Ele pode ser o Sacerdote, mas ainda tem menos autoridade prática que os Auxiliadores e seu pai, graças à sua pouca idade e experiência. E, já que a dúvida é considerada uma falta, seria melhor demonstrar certeza, mesmo que só a tenha no olhar. Se não é possível que purifique sua alma da dúvida, que pelo menos seu pecado seja conhecido apenas por ele, e talvez pela Voz, que sabe de todas as coisas.

E também, é claro, pelo garoto de olhos negros que foi testemunha de seu Crime.    

(Talvez o garoto de olhos negros?)

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(Talvez o garoto de olhos negros?)

Dantálion [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora