Seus olhos faíscam, aumentando a mágoa de Lúcio.

- Mas essa é só uma parte da verdade. – continua, amenizando o tom – Como Surdo e como integrante normal da cidade, eu sempre te observei de longe, ainda mais depois das relações existentes entre sua família e nós no passado. Se quer saber, eu sempre desejei te usar, te persuadir, te atrair até mim. Passei anos planejando, pensando, te analisando, e esperei ansiosamente até o dia daquela Audição, em que finalmente você cometeu um deslize e se deu conta de que eu existia. Mas fiz tudo isso porque, no fundo, eu sinto como se sempre te conhecesse intimamente.

"Eu tinha minhas dúvidas a seu respeito, mas, no dia da Audição, quando te vi olhando para dentro do Templo, quando te vi olhando em minha direção, eu tive certeza de quem você era: você era igual a mim. Você, Lúcio, não se contentaria em simplesmente viver, você deseja estar presente, deseja ser algo maior do que nasceu para ser. Você e eu somos o tipo raro de pessoa que não aguenta uma vida superficial e fácil. Nós queremos sentir o sangue correndo em nossas veias, mesmo que para isso tenhamos que nos ferir. Você é como uma parte de mim mesmo, e eu sinto que preciso de você desesperadamente."

- Por que você mentiu pra mim? – retoma o Sacerdote, sem se comover com o discurso acalorado do outro – Por que me perguntou sobre minha mãe como se não a conhecesse, quando na verdade você a conheceu mais do que eu? Por que não me contou sobre ela e meu avô antes?

Dantálion responde com seriedade:

- Porque algumas coisas precisam de tempo para serem ditas.

- Isso significa que você ainda está escondendo coisas de mim?

- Sim, ainda estou, para o seu próprio bem.

Ele sacode a cabeça, ressentido.

- Pensei que fôssemos amigos...

- Nós somos amigos. – diz Dantálion, tocando a mão esquerda em seu ombro – Você é a primeira pessoa para quem eu contei meu passado, é a primeira pessoa que eu trago até aqui. Nunca confiei em ninguém como eu confio em você. Você é meu único e melhor amigo, Lúcio, não duvide disso.

- Mas, mesmo assim, esconde coisas de mim.

- Por favor, não me leve a mal, – suspira o garoto – mas estamos no meio de um conflito, e somos representantes de lados opostos. Existe uma distância muito grande entre nós. Eu sou um ninguém e você é o Sacerdote, eu lidero os Surdos e você comanda o Palácio, e cada um de nós tem sua própria função para cumprir. Não adianta fingirmos que nossa amizade é como a de qualquer outra pessoa. Existem limites de confiança que não podemos ultrapassar. Temos que aceitar isso.

- Então... Você está dizendo que nunca seremos amigos realmente? - os olhos vermelhos de Lúcio começam a ficar úmidos - Que nunca poderemos confiar inteiramente um no outro? Que tudo se resume a apenas nosso interesse mútuo de continuarmos vivos? É simplesmente isso para você? Peças num tabuleiro? Você me usa enquanto tenho utilidade para você, e depois me entrega para morrer?

- É claro que não! Eu estou me arriscando para proteger sua vida!

- Você está se arriscando para proteger seus planos! Minha vida é a última das suas prioridades!

- Isso é uma grande mentira e você sabe!

- Não! Eu não sei! Eu não tenho como saber o que é verdade no meio das suas mentiras que não acabam nunca!

- Você conta tantas mentiras quanto eu, Sacerdote! O que me garante que você não vai me trair quando a hora chegar?! Você é um medroso, um covarde que escolhe matar qualquer um para sair da reta! Você me venderia por sua segurança. Você já pensou nisso muitas vezes! E faria, se precisasse! Estou errado?! Você pode olhar na minha cara e dizer que estou errado?!

Lúcio se afasta alguns metros, sem coragem de encará-lo de volta.

Dantálion revira os olhos, impaciente.

- Olha, Lúcio, nós bebemos, estamos muito emotivos e cansados. Já não acha que é hora de voltar para casa? Você sabe melhor do que eu que essa discussão é inútil. Não somos as melhores pessoas do mundo, e não estamos na melhor das situações para sermos legais um com o outro. A realidade é essa, e nossos sentimentos jamais serão capazes de mudar as coisas.

Lúcio abaixa a cabeça, escondendo o rosto entre as mãos.

- Eu vou voltar para o Palácio.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now