Capítulo 04 - Caindo a Ficha

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Meu primeiro dia em Recife parecia não ter fim. Depois da igreja, eu e Clara pegamos um táxi e fomos almoçar em um shopping. Ela dispensou o chofer porque ele iria buscar seus enteados no colégio.

A moça contou-me um pouco de sua vida, sobre seu marido Marcos Paladino, sobre os enteados, recordou a perda da mãe Marli, falou da infância pobre... E eu achando que aquela mulher tão elegante, de apenas 24 anos, já havia nascido rica! Tão chique e aparentemente madura que à primeira vista achei que ela tivesse uns 30 anos. Nem parecia ser apenas seis anos mais velha que eu.

O celular de Maria Clara tocou.

- Oi, paz! – ela atendeu

- ...

- Está bem, obrigada por avisar.

- ...

- Sim, fico no aguardo.

- ...

- Certo, qualquer coisa eu aviso também. Muito obrigada!

Desligou e não me falou nada. Fiquei bem curiosa.

- Jéssica, o que você quer fazer agora? – falou enquanto comíamos

- Como assim? – fiquei surpresa com a pergunta

- O que você está com vontade de fazer?

- Hum... Não sei. Eu gostaria de deitar um pouco, estou bem cansada.

- Bem, agora não vai dar. Mas você quer fazer algo aqui no shopping? Tem algo que você gostaria muito de fazer pra começar essa nova fase da sua vida?

Não respondi. Continuei mastigando enquanto pensava. Ela continuou...

- Sempre que estou meio pra baixo ou muito pra cima, precisando balançar a minha vida, vou ao salão. Não gosto muito de mudar o visual não, sabe?! Sou bem arcaica pra essas coisas. Minha amiga Paula é que é bem doidinha assim, mas eu gosto de ir ao salão pra fazer as unhas e escovar o cabelo.

- Ah, a senhora não precisa de salão não. Já é tão chique.

Ela agradeceu. Falei das minhas preferências quanto ao meu visual e ela me levou a um salão de beleza ali perto. Decidi cortar o cabelo bem curto e pintar de castanho escuro. Hidratou também e ajeitou minhas unhas. Senti-me nova e pronta para algo novo. Durante o tempo que passei no salão, Clara não desgrudava do celular. Fomos fazer um lanche, já era perto das 17hs.

- Jéssica, falei com Selma, lá da igreja. Infelizmente ela ainda não conseguiu um lugar pra você ficar, mas eu tenho um apartamento, que é só meu, e já combinei com meu marido que essa noite irei pra lá contigo. – falou-me.

Fiquei grata. Quem não ficaria? Aquela mulher acabou de me conhecer e estava fazendo tanto por mim! Mas também fiquei apreensiva. Não queria dar trabalho. Nunca fui do tipo de pessoa que dá trabalho aos outros, pelo contrário, eu sempre fui muito de querer ajudar. Talvez Deus tivesse olhando meu passado e derramando excesso de misericórdia na minha vida.

- Mas olha, não precisa se preocupar – Clara continuou – logo, logo acharemos um lugar pra você ficar e resolveremos a questão dos seus estudos. E também um trabalho, que é o que você mais precisa, não é?!

Assenti. Naquele primeiro dia nessa cidade ainda não me passava na mente nenhuma ideia de todas as reviravoltas que eu viveria.

Maria Clara ligou para o motorista ir nos buscar, terminou de tomar seu café, e logo depois fomos para seu apartamento. Arrumou-me um quarto confortável para descansar e deixou-me à vontade, enquanto resolvia coisas pessoais em seu notebook, na sala de estar. Eu estava sem fome e tão cansada... Tomei um banho na suíte do quarto e deitei-me cedo. No entanto, estava tão cansada que não conseguia pregar os olhos. Só conseguia pensar, pensar...

Pensar na saudade que sentia de meu pai, na falta que me fazia uma mãe. Pensei tanto nas pessoas que amava, e eram poucas. Basicamente só mesmo minha família e a família de Dona Lourdes. Pensei no passado, no futuro e, sobretudo no presente. Meu futuro me assustava, por ser algo desconhecido. Meu passado me doía a alma. Meu presente não me parecia ser bem um 'presente', pois que presente seria tão ruim quanto esse que a vida me deu? Pela primeira vez, nos últimos dias, caiu a ficha. Minha vida mudou.

Eu estava deitada naquela cama, no apartamento daquela mulher que estava sendo tão bondosa comigo sem nem me conhecer e não imaginava que iria um dia conhecer Jonas, Cássio, Kauê, Letícia, Teresinha. Tanta gente que depois daquela primeira noite em Recife passou por minha vida e eu não tinha a mínima noção de tudo o que eu ia viver. Isso me alegra e ao mesmo tempo me dói. Porque é tão estranho pensar que coisas boas me aconteceram após a pior desgraça da minha vida. E talvez se eu não tivesse vivido essa grande desgraça, eu não teria vivido as coisas maravilhosas que hoje vivo. A benção que a minha vida é hoje talvez não fosse desse jeito se eu não tivesse passado pelo vale que passei, pelas águas tortuosas que passei.

Adormeci com esses pensamentos e na manhã seguinte o sol invadia o quarto de maneira deslumbrante, como que se um anjo houvesse puxado uma enorme cortina e tivesse ido me acordar com um beijo. Eu sentia paz. E eu não era mais Gel, de São Caetano, a mecânica dos cabelos grandes e desalinhados. Agora eu era Jéssica, de cabelo curto e com uma energia enorme de lutar. Acordei sentindo-me renovada, pronta para viver, porque a ficha finalmente caiu. Naquele dia eu tive certeza que eu não era mais uma menina bruta, rude, e que estava sendo transformada numa grande mulher. Não que eu quisesse essa transformação, mas as circunstâncias me fizeram naquela noite acreditar que eu precisava ser muito mais forte do que eu realmente acreditava ser.

Precisava abandonar velhos hábitos, precisava abandonar a pessoa que eu era e me transformar numa nova Jéssica, mas sem perder a essência de mim. Ainda que eu não tivesse uma religião, acordei com a certeza de que naquela noite eu tive um encontro com Deus. Acordei nova, pronta para as batalhas da vida. Deus não ia me dar uma carga que eu não pudesse carregar.

Sexta às OitoWhere stories live. Discover now