1.7 - Perdoar

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   "Às vezes, o perdão é como um homem em guerra"
- Hillsong United
(Heaven Knows)

  Sentei em um dos últimos bancos da igreja. Faltava duas horas para a reunião começar e meu corpo estava exausto pela faculdade e pela tensão causada pela presença de Tyler naquela casa. Senhora Vera e senhor Louis não estariam em casa durante a tarde e eu não queria ficar naquela casa sozinha com um tio que ainda me causava medo.
  Emma mal olhou em minha cara durante as aulas, ela sorriu algumas vezes quando sem querer esbarrou em mim no corredor da enorme faculdade.

   Estava revendo algumas fotos do ano passado em meu instagram e via o quanto eu tentava preencher meu vazio com festas e bebidas. Apaguei uma por uma das fotos, ambas tinha eu sorridente ao lado de uma amiga bêbada.

— E ai girl? Está aqui muito cedo, não acha? — Julie pergunta se sentando ao meu lado e logo pegando seu celular. — Falta duas horas para começar, quer ir tomar um milk-shake? Podemos chamar o Jonathan, ele já chegou.

  Algo que eu havia percebido em Julie era que ela se empolgava facilmente para alguma coisa. E isso me fazia rir as vezes.

— Eu estou sem dinheiro aqui comigo, deixei em casa. — falo desligando o telefone o pondo no bolso.

— Jonathan paga, sem problemas.

— O que tem eu?

   Olho de Julie para ele e acabo rindo da cara inocente que Julie faz. Jonathan sorri pra mim e eu retribuo, fazendo meu rosto corar. Aquilo era estranho pra mim, tê-lo como amigo.

— Paga um milk-shake para a Mari...posso te chamar assim? — seu olhar se direciona pra mim.

  Apenas assinto e os dois vão em direção a porta logo me chamando em seguida. Com eles eu me sentia bem e podia conhecê-los aos poucos.

— Gosta de que sabor? Eu gosto de morango.

— Prefiro o de baunilha. — digo enrolando o meu fone e o colocando no bolso da calça.

  Caminhamos em torno de cinco minutos para chegar a sorveteria que era perto. Ela abrira faz dois anos e mesmo assim era a melhor sorveteria que havia naquele lugar.
   Assim que chegamos, sentamos na mesa mais afastada da entrada e Jonathan foi fazer os pedidos. Julie não parava de tagarelar sobre sua faculdade de medicina e como aquilo era mais difícil do que ela pensava.

— Mas eu sei que não é isso que Deus quer pra mim, só vou terminar porque era o sonho do meu pai. — ela solta quando mexe na unha.

— Como assim não é o que Deus quer?

  Ela me encara por alguns segundos e pisca antes de falar algo.

— Eu quero fazer a obra no altar, Deus colocou esse desejo em mim quando fui batizada com o Espírito Santo. — ela sorri animada. — Meu pai aceitou de boa, mas eu tenho que terminar essa faculdade. A não ser que eu case antes de terminar, ai terei que trancar.
 
  Assinto para ela ver que eu entendi. Batismo com o Espírito Santo? Eu deveria perguntar o que é isso ou deixava quieto?

— O que é batismo com o Espírito Santo?

— Ah. — ela sorri e se ajeita na cadeira. Ela suspira e sorri. — É o espírito que Jesus nos deixou quando subiu. Ele lhe traz paz, amor e a certeza da sua salvação. Mas antes disso você precisa se batizar nas águas, onde sua velha criatura é deixada. Você é limpa de todos os pescados e através desse ato, você mostra que quer Deus, que se arrepende de tudo o que fez.

  Neste momento Jonathan chega e se senta ao meu lado e encara nós duas. Julie apenas sorri e pega seu celular.

— Do que estavam falando?

— Mariana me perguntou o que é batismo com o Espírito Santo. — Julie diz ainda de cabeça baixa digitando no telefone. — Minha irmã está chegando, estou louca pra vê-la.

— Sério? — Jonathan pergunta alegre e eu apenas espero o entusiasmo deles passarem. — Fernanda é a irmã da Julie que casou com um pastor e resolveu deixar todos nós.

— Jonathan! — Julie o repreende.  — Ela foi servir a Deus no altar e Jonathan era um grande amigo dela e ficou com saudades.

  Rio dos dois mas logo paro assim que avisto tio Tyler saindo da sorveteria. Eu não tinha o visto quando entrei, talvez nem teria pisado naquele lugar caso o tivesse visto. Ele está acompanhado com uma mulher alta e morena, seu sorriso brilhante está estampado no rosto, parecendo estar feliz ao lado dele.

— Está tudo bem? — Julie pergunta tocando em minha mão direita para despertar minha atenção. — Você parou de rir do nada e ficou séria, como se tivesse visto um zumbi.

   Os gritos ecoavam em minha cabeça. O seu olhar sobre meu corpo nu. Meu corpo doído pelo seu peso em cima de mim e suas mãos quentes tampando minha boca. É tudo o que volta em minha mente como um rio de lembranças esquecidas pelo tempo. O seu carinho comigo quando brincávamos e minha inocência roubada.

— Mariana! — Jonathan grita e eu pulo da cadeira ainda em choque por tudo tão nítido voltar. — Você está bem?

  Sua mão segura a minha com firmeza e Julie olha-me preocupada. As palavras morreram na minha boca.

— Não.

  Foi a palavra, a chave para a primeira lágrima descer e trazendo consigo um rio de lembranças amargas e doloridas.
  Abaixo a cabeça e deixo as lágrimas descerem, levando consigo minha dor por ver aquele homem que destruira minha inocência.

— O que aconteceu? — Julie pergunta com sua voz mansa e eu apenas nego deixando um soluço passar. — Aqui não é lugar pra isso, vamos sair daqui. Jonathan, cancela os pedidos.

+++++

  Sentamos em um banco na praça que estava vazia pelo horário do dia onde a maioria se encontrava trabalhando. Jonathan e Julie esperam eu falar calmamente.

  Eu respiro fundo e encaro minhas mãos que estavam suadas pelo nervosismo. Nunca me imaginei contando o episódio desonroso de minha vida.

— Ontem quando eu voltei pra casa...— paro de falar por alguns minutos e prossigo. — Encontrei um fantasma do passado. Ele se chama Tyler, é meu tio por parte de mãe. — encaro meus pés e sinto Julie segurar minhas mãos. — Quando eu tinha seis anos, minha mãe deixou ele cuidando de mim para resolver um assunto com a amiga e o meu pai estava no trabalho. Meu tio me chamou para brincar...

— Já entendemos, Mari. — Julie diz me abraçando e Jonathan apenas olha para um ponto no chão. — fica calma. Você lembrou dele agora?

— Não, ele estava na sorveteria e eu o vi sair com uma mulher.

— Você contou para os seus pais?

   Nego.

— Você tem que contar. — Jonathan diz se levantando. Eu coloco as mãos na cabeça e depois as passo no rosto. Aquele assunto me deixava nervosa. Papai e mamãe jamais acreditariam em mim. — O que ele fez com você, pode fazer com qualquer menina.

   Julie o olha e eu apenas coloco as mãos no rosto.   

— Só Deus vai poder te ajudar nesse momento. — Julie diz após respirar fundo. — Só Ele poderá te ajudar a perdoar seu tio e lhe dar forças para contar aos seus pais.

— Busque a Ele, neste momento Deus está aqui vendo cada lágrima rolar do seu rosto. — Jonathan diz limpando uma lágrima que desceu dos meus olhos. — Se seu tio tentar algo, ligue pra mim ou pra polícia. Por favor.

    Ele pede meu celular e põe seu número. Respiro fundo e esfrego a mão no rosto para espantar a vermelhidão do choro. Julie me abraça apertado e Jonathan olha de um lado para o outro. Mil e um pensamentos em minha mente, lembranças esquecidas gritando e eu precisava de ajuda, desta vez de Deus. 

  

Entorpecida - Vol 1Onde histórias criam vida. Descubra agora