EPÍLOGO

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         A água batendo diretamente contra a cabeça nunca pareceu tão ácida. Queimando a pele, atravessando os ossos, dissolvendo o cérebro, a carne, os órgãos, cada músculo, cada fibra.

Zankiel estava escorrendo pelo ralo. Ele nunca pensou que fosse capaz de sentir algo que prevalecesse sobre sua própria existência. Sobre seus mais profundos instintos.

Sobre o demônio que existia e dominava a maior, senão total, parte de si. A mão forte fechou o registro e ele encostou as costas na parede de ladrilhos já gelados.

Sabia que Kamelya estava bem ali ao lado, deitada na cama do quarto em um hotel barato.

Mas o que Zankiel sequer imaginava, era o que ela estava fazendo. Por isso e apenas por sua ingênua tentativa de não invadir a privacidade dos pensamentos da morena, ele se secou e vestiu a calça jeans antes de abrir a porta.

― Eu estava pensando se... ― Mas ele hesitou quando os olhos caíram na figura da mulher deitada silenciosamente na cama. ― Kamelya?

Aquele milésimo de segundo em que ela não respondeu fez Zankiel se materializar em cima do corpo antes mesmo de um centésimo.

― Kamelya! ― O grito atravessou o quarto e foi como se estivesse dentro dela.

Como se fosse dele, a mão invisível esmagando o coração feminino.

― Pare com isso! ― Empenhou tudo que tinha para afrouxar o aperto suicida. Por mais que quisesse a morena ali... do seu lado para sempre. Ainda sim... Zankiel fez de tudo para parar a compressão fatal que ela, maleficamente, empenhava no próprio coração.

Kamelya estava matando o órgão mundialmente assemelhado ao sentimento de amor. De compreensão, de vontade.

Ela estava explodindo o próprio coração sem aviso prévio ou preparação.

― Para! ― Mas por algum motivo, havia demorado minutos demais naquele chuveiro.

Por algum motivo, passou tempo demais olhando a água cair, se perguntando no que poderia acontecer.

Se queria mesmo que sua magnífica Anjo abdicasse de sua verdadeira natureza por ele... Pelo filho de Lúcifer...

Ele não queria, no fim...

Amava Kamelya a ponto de morrer. Voltaria para dentro da imensa masmorra que era seu pai, e de lá nunca mais sairia.

Mas feliz... Aprisionado, sorrindo...

Por saber que um anjo voava no céu.

Seu anjo, ainda que longe, ainda que inalcançável. Era ela! Nenhuma outra.

Era Kamelya...

Os dentes trincaram e a respiração desapareceu quando, como um balão, o coração feminino explodiu dentro do peito, e uma enxurrada de sangue invadiu a traqueia, subindo sem controle até transbordar pela boca semiaberta.

De olhos arregalados e sentindo a própria existência se tornar inútil, Zankiel contemplou Kamelya morrer.

A gravidade atingiu o homem como uma ancora afundando seu corpo para uma fenda oceânica inescapável. Foi como se ela nunca mais fosse voltar.

Os olhos dourados ficaram tão vazios. O brilho desapareceu.

Zankiel caiu sobre ela e enfiou os braços embaixo do corpo feminino até estar completamente abraçado à figura frágil. Ele respirou na curva do ombro delicado sentindo o sangue ainda quente que escorria pela bochecha pálida tocar a pele de seu rosto.

Nove Vidas - (COMPLETO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora