Capítulo Três: Implacável

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Selene perdeu a noção de tempo, guiando se pela escuridão do céu, correndo cegamente, em frente, e apenas em frente, até alcançar uma pequena cidade. A lua já estava alta no céu, quando Selene alcançou uma avenida, com comércios e lâmpadas a gás, presas as portas das casas. Haviam poucas pessoas nas ruas, mulheres com grossos casacos de pele, protegendo se do vento gelado. Algumas delas lançaram olhares duvidosos a Selene e seu vestido curto e chamuscado. Sentia frio a cada ventania, mas o frio era bem vindo, pois a fazia se lembrar constantemente de quem ela era agora. Uma caída. Uma foragida. A dor do frio era o menor de todos os seus problemas.
- Ei - disse uma voz hesitante vindo de seu lado esquerdo. Selene virou se rapidamente e encontrou um garoto jovem, de escuros escorrendo pelos olhos, que pareciam quase assustados. Estava sem o paletó, apenas camisa branca e alças, e sua mão estava estendida entre os dois, como se ela precisasse ser acalmada - Você está frio, senhorita? Precisa de ajuda?
Selene abriu os lábios para dizer que precisava, mas então o som retornou, fazendo com que seus ouvidos latejassem, e assim como os dela, o garoto em sua frente também ouviu o som e se curvou para o chão tentando proteger os ouvidos. As pessoas que transitavam, confusas e assustadas imitaram seu gesto. A dor se expandia pela mente de Selene alcançando seus lugares mais profundos, tomando a. Ela estava prestes a sucumbir a dor e ao medo que sentia, quando o garoto a sua frente, tirou as mãos dos ouvidos, e as colocou sob a boca de Selene, impedindo a de qualquer coisa. Ele era muito mais forte do que parecia, e empurrou Selene para a viela ao lado, escondida de olhares alheios. Sua primeira reação foi detectar o gosto de sangue na mão do garoto, e seu olhar aflito, na escuridão.
- Você vai ficar bem. Eu prometo. Só quero ajudar - disse a voz suave do garoto
Então me ajude, pediu Selene mentalmente, sentindo seu rosto sendo molhado em água salgada. Lágrimas ela reconheceu. As tinha visto no rosto de seu amor, muitas vezes, durante seus pesadelos mais sombrios. Ela estava chorando.
A última coisa que se lembra é do garoto acariciando seu cabelo, afagando o calmamente, antes que seus olhos ainda lacrimosos, pesassem e ela caísse nas sombras.

 A visão de Selene retornou antes de sua mente. De início só havia a penumbra e uma leve luz alaranjada. Então as cores tomaram formas e Selene se viu encarando um pequeno quarto com assoalho de madeira, alguns móveis gastos incluindo uma cama, e a si mesma sentada em uma cadeira. Tentou retirar a dormência de suas mãos, movendo as mas seu pulso estava preso na cadeira, ela se deu conta. Tentou falar alguma coisa, mas algo machucava sua boca, uma pedaço de pano atado firmemente contra ela. Selene se assustou quando viu que não estava sozinha, e que havia alguém apoiado na janela, de frente para o luar. A figura se voltou para ela ao perceber que ela se mexera.
- Ah - disse o mesmo garoto que havia a encontrado na cidade. Selene observou o quanto ele parecia ainda mais jovem, sob a luz das velas, agora que podia enxerga lo bem. Seus olhos eram castanhos, e o cabelo era de mesmo tom, encaracolado sob os olhos - Que bom que você acordou. - ele começou a caminhar até a sua frente, agachando se muito próximo dela. Selene tentou se encolheu mas as presas em seus pulsos não a permitiram. O garoto percebeu sua hesitação.
- Você está com medo de mim? - Perguntou ele de maneira estúpida. Seu rosto era de certa forma, angelical demais, Selene encontrou as palavras. Ele parecia angelical, para alguém que pudesse fazer mal a ela. Seus lábios grossos que se curvaram num sorriso enquanto ela o encarava sem piscar - Eu prometi a você que iria ajuda lá. Não há o que temer.
Selene pensou no pano sob sua boca impedindo a de gritar e das presas em seus pulsos, machucando a. Isso não era  à melhor recepção de boas vindas. O garoto se levantou com uma expressão calma e atravessou o pequeno quarto em dois passos alcançando a porta e dizendo algo que Selene não ouviu.
Quando voltou para dentro, trazia consigo uma nova figura. Uma mulher de meia idade com um vestido lilás, de dormir, e longos vermelhos, e parou próxima a Selene com um leve sorriso.
- Oh, minha querida - disse a voz suave da mulher - Peço perdão por isso, pelas correntes, em seus pulsos e pela mordaça. Como Eleazar aqui, já deve ter dito - Ela apontou para o garoto que acenou amavelmente - Estamos aqui para ajudar você. Todos esses apetrechos são apenas uma garantia que você os fará.
Selene se perguntou se eles não podiam simplesmente terem falado com ela, ao invés de sequestra lá e prende lá. Um pouco tarde, ela se deu conta de que não sentia mais tanto frio, isso por que havia um casaco de peles ao redor de seu corpo.
- Assim como você, nos também somos anjos, expulsos do céu. - revelou ela - Como disse, este é Eleazar, e eu sou Francesca. Há outros de nós, aqui na Terra, formando um pequeno clã que você terá a oportunidade de conhecer em breve.
Selene assimilou as palavras devagar. Haviam mais anjos, não corrompidos ao que parecia, que não tinham se ligado a forças das trevas. Anjos a qual ela podia se ligar.
- Voce tem alguma noção do que causou o alvoroço por onde você passou? - começou Francesca mantendo sua expressão amável - Mortais, perdendo suas vidas, ao ouvirem sons poderosos demais para eles?
Selene balançou a cabeça. De certo, deveria haver um caçador atrás dela.
- Aquele som que estridente, foi causado por você, quando falou a língua dos Anjos, em solo mortal - começou ela - Como você sabe, um anjo celestial é uma arma do Senhor. Tudo neles, desde suas asas, suas armas, tudo, incluindo sua voz - disse a mulher - A voz dada aos Anjos pelo criador, não foi feita para ser escutada por ouvidos impuros, os de pecadores.
- O que explica por que as pessoas não puderam ouvir você sem sentir dor - Acrescentou Eleazar
- E após caída, nem mesmo você pode ouvir sua propia voz celestial, sem causar destruição, destruição suficiente para destruir um mundo. - Concluiu ela
- Inclusive, nenhum de nós, Anjos Caídos, temos permissão para usar nossas vozes celestiais, não até o Apocalipse bíblico, onde os anjos celestiais, irão cantar a última música - Eleazar parecia quase emocionado ao relatar isso
- Eleazar - repreendeu a senhora suavemente - Enfim, foi desta forma que a localizamos, seguindo os rastros de destruição deixados por sua voz. Efeito que pode ser revertido, e claro. Podemos ensina lá a falar está língua mortal.
Selene balançou a cabeça a menção disso. A senhora a analisou.
- Você já teve contato com a língua mortal? - expeculou a mulher
Selene se lembrou de flashs. Se lembrou do rosto de um jovem, conversando alegremente com sua família, mãe, pai e irmãos ao redor de uma lareira. Selene se lembrou do rosto luminoso do jovem, e dos cabelos loiros que caíam sobre seu rosto enquanto ele falava num rústico sotaque, antes de assentir confiante.
A mulher balançou a cabeça em aprovação.
- Interessante, querida. Ajude a a tirar a mordaça, e as correntes - indicou a Eleazar que cumpriu a tarefa obediente, tirando uma chave do bolso e destrancado os as correntes nos pulsos de Selene, desatando a mordaça de sua boca seca e ferida de Selene. Seus lábios tentaram molhar os lábios rachadas, enquanto os olhos permaneciam fixos no chão de madeira.
- Você sabe quem você é? - começou a mulher, cautelosa
Mesmo livre da mordaça, Selene assentiu sem nada dizer, apertando o casaco de peles contra seu corpo.
- Isso torna tudo mais fácil - apontou - Qual o seu nome?
A anjo se lembrou das palavras que formavam seu nome, do som que elas tinham. Inconscientemente, imaginou seu amado de cabelos claros, dizendo o em voz alta.
- Selene - Disse ela por fim, sua voz rouca soando distante e desconhecida aos seus ouvidos - Meu nome é Selene - completou imitando o sotaque arrastado com o qual estava acostumada
- Selene - admirou se a mulher - Selene, uma das arcanjos. Eu me lembro de você, antes de cair.
- Isso foi a quanto... - uma nota de sua voz saiu desafinada, e o som fez com que uma taça no canto da mesa explodisse, fazendo Eleazar proteger os ouvidos com as mãos rapidamente - Me desculpe - recobrou se ela
- Esta tudo bem - disse a mulher - Eu fui uma das primeiras a cair na Terra, sem corromper me como os primeiros Caídos.
- Os Primeiros - repetiu Selene - Os Corrompidos.
- Sim. Porem, como eles, eu não cai por ganância ou poder. Nenhum de nós, aqui caiu por isso. Alguns de nós caíram por desejar algo de melhor para nós mesmos, ou para toda nossa espécie - Concluiu ela, com um olhar nostálgico - Boas intenções consideradas erros, diante dos olhos do Criador - seus olhos se voltaram contra Selene como se seu foco retornasse - Enfim, essa humilde casa é onde nosso pequeno clã está instalado no momento, oculta aos olhos mortais, e onde você é sem dúvidas, bem vinda para fazer parte disso, Selene.
O sorriso de Francesca era tão amável que Selene quase sentiu vontade de sorrir também.
- Obrigada - disse ela com algum esforço
Francesca tomou um candelabro entre suas mãos se levantando.
- Você com certeza está com fome - Concluiu ela - Irei preparar algo para você tomar, algo quente de preferência - e apontou para a cama - Fique a vontade para usar o que quiser, esse vestido é confortável e um dos favoritos das meninas - indicou
Selene agradeceu outra vez e Francesca se foi, preparar algo para ela. Eleazar pareceu hesitante após sua partida como se quisesse dizer algo e mudasse de idéia num último segundo, saindo sem nada dizer, fechando a porta de madeira com um rangido e um clique final.
A primeira ação de Selene foi correr para o peitoril da janela. Até onde sua vista alcançava, o lugar era montado por casas altas, e casaroes, ruas, e avenidas iluminadas por lâmpadas a gás. Parecia pacífico aquela hora da noite. A lua continuava a pino no céu. Selene voltou para a cama, livrando se de suas roupas, e colocando o vestido macio com que fora presenteada. Ele era realmente quente e confortável, sensações pela qual Selene ansiara sentir. Estava tentando se livrar de algumas dobras no tecido, quando a porta bateu.
Selene ficou em silencio por um segundo. A batida insistiu.
- Entre - disse ela, lembrando se de como agir
Eleazar colocou o corpo para dentro.
- Francesca disse que seu café está pronto.
Selene apenas assentiu. Sem se dar ao trabalho de perguntar, Eleazar atravessou seu quarto encontrando se novamente no peitoril da janela. Percebendo o olhar fixo de Selene ele se desculpou.
- Esse é o meu lugar favorito da casa. Gosto de olhar as coisas pelas janelas - explicou - Parecemos tão perto e ao mesmo tempo tão longe do que acontece com eles. Os mortais. Mas no fim somos todos atingidos. Todos desprezados pelo Criador, como iguais.
- Você está zangado? - Perguntou ela, cautelosa, aproximando se dele
Eleazar em sua expressão mais despreocupada, negou.
- Só um pouco decepcionado, ainda. Não faz muito tempo desde cai - anunciou ele - Ainda tenho alguns acessos de amargura, principalmente a noite.
Selene assentiu, sem saber como reagir.
- Você caiu. E eles cuidaram de você. - afirmou ela
- Sim. Mas comigo foi mais difícil de me encontrarem - ele sorriu em sua direção, mostrando seus dentes brilhantes - Eu não usei minha voz angelical para destruir coisas, já que não a tenho. Eu não era um anjo importante no Céu. Não como você, arcanjo - disse ele num tom que incomodou Selene. Aquele garoto parecia alcançável, mais do que Francesca. Ele parecia amável mas não demais. Ele responderia o que ela quisesse, Selene percebeu.
- Que dia é hoje? - disse ela com um sotaque forte
O garoto a encarou e refletiu.
- 24 de Maio de 1850, se não me engano.
Selene fez uma contagem rápida.
- 9 dias - disse ela
- 9 noites - ele concluiu com um sorriso
Os olhos de Selene se fixaram cegos, em algum ponto além daquele quarto pequeno.
- Onde estamos? - questionou ela
- Rússia - disse ele, e a essas palavras, a mente de Selene se inundou com diversas imagem. Um homem jovem, de cabelos dourados, cavalgando com o irmão mais novo, ajudando a mãe a cortar legumes, tomando a irmã em um abraço, cortando lenha de uma floresta aos arredores de sua casa. Um homem que tinha pesadelos, um homem para qual Selene vinha sendo presente, a cada dia, afugentando sonhos ruins, tocando seu rosto com sua fria massa corporea, acompanhando a linha forte de sua mandíbula. E excepcionalmente onde ele se encontrava. Rússia. Naquela cidade.
- Minhas asas ainda existem, uma vez que eu tenha caído? - Perguntou Selene em um tom gélido que chamou a atenção de Eleazar, em sua desconfiança.
- Não - ele disse - Elas ficaram para trás, quando você caiu.
Selene identificou cada nota na voz do rapaz e a mínima diferença de tom, foi perceptível a seus ouvidos.
- Você está mentindo - anunciou ela. Selene já fora alertada sobre a mentira no céu, assim como já havia presenciado a mentira entre os mortais, entre a família do homem pela qual ela havia caído. A mentira era a pior de todas os golpes.
Eleazar pareceu surpreso por ser desmascarado.
- Por que você quer tanto saber? - indagou de volta
- Por que eu preciso ir - anunciou ela - Não posso ficar aqui.
Eleazar levou um segundo precioso para assimilar isso, enquanto o casaco de pele ao redor de Selene caia ao chão.
- O que? Você não pode sair! Não é seguro! Você acabou de chegar! - ele tentava convence lá, quase gritando de propósito, para que Francesca e outros mais no andar de baixo ouvissem. Selene se surpreendeu com sua habilidade intuitiva
- Eu prometo não fazer os ouvidos de ninguém explodirem - anunciou ela, encarando seus olhos castanhos - Sinto por isso, Eleazar.
- Não! - gritou o garoto, pulando em cima dela, mas foi recebido apenas com o baque de seu corpo contra o asssoalho. Penas negras e finas, caíram ao seu redor, e em cima sua cabeça, quando dolorido, Eleazar, tomou uma delas entre os dedos. Foram necessários apenas alguns segundos antes que Selene desaparecesse no ar.

Anjos de Sangue: OrigensWhere stories live. Discover now